6 e meia. O Sol, espalhando o lume no
breu, faz gemer o penoso cantar de galo. Um motor saracoteia a manhã. Levanto
da rede fria de sereno, piso no vermelho xadrez e procuro lançar preguiças à areia
branca da levada.
Na frente da casa grande, onde a piçarra
redemunha, chego empunhando o café de caneca, sento na balança de ferro, ao
lado do balcão do “mercadinho Freitas”, onde se debruça, todos os dias, aquele
homem em botões de peito aberto, de face redonda, bigode ralo e olhos úmidos, penteando
os fios negros de cabelo para trás, ou a tamborilar um xote do Gonzagão, na rádio
Cultura do Paracuru.
Como se fora o apito de trem, as memórias
do menino de seu Neco e dona Naninha despertam: “Eu ainda estou por aqui, não
estou?”
José Rodrigues de Freitas, o Zé Guajá –
apelido que recebeu devido ao tom avermelhado da pele, similar à cor do
caranguejo –, traz nos ombros, em 2015, o peso leve de Centenário.
Catando uma manga caída naquela hora, lembrou-se
do tempo de criança, destocando e preparando a roça na fazenda Santa Rosa, do
seu Quinca. Aprendera a ler na “Carta do ABC”, sob o amor da mãe-professora-parteira.
Quando rapaz, além de dançarino de latadas – arriscou um arrasto na chinelinha
–, corredor e valente campeador de reses perdidas, descobriram que era
negociante dos bons, quando juntou um casal de jumentos, uma vaca, um bezerro e,
num troca-troca sem gastar nenhunzinho, acabou comprando terreno para a família
morar. Mas o Zé, inquieto e namorador que era danado, pediu ao Jaime para fazer
um terno bonito, pois ia arredar pé, sem tutu mas cheio de esperanças, para Fortaleza.
Mas veja como se dão as coisas: justamente por conta da demora na feição desse
bendito terno, acabou se tornando sócio de um comerciante da região, o Zeca
Batista, e, mais importante, pouco depois, ganhou na maior sorte o coração de
sinhazinha Maura Braúna, moça querida e filha de dono de terra. Onde é que o Zé
podia imaginar um troço desses? Aninharam-se em uma casinha-mercearia – que
infelizmente nem existe mais – e, com o tempo, a família: Maurício, Fátima,
Fatimy, José Nato e Lúcio – Sérvulo viria mais tarde, no colo redobrado de
Maura.
O Zé estacou um pouco seu lembrançar para
atender um molequinho na compra do litro de farinha e de goma, levando, de
quebra, um pirulito. Abotoou a camisa, colheu as moedinhas entre dedos nodosos,
anotou qualquer coisa num caderno e, despachado o freguês, continuou:
De primeiro, as idas e vindas a cavalo e
em trem para comprar mantimentos em Fortaleza, que só chegariam no comboio; o
surto de varíola em 47, quando decidiu ir sozinho à capital buscar ajuda e
voltou carregado de vacinas e com a missão de ele mesmo aplicá-las na
comunidade; da ida para Fortaleza com a família para os filhos estudarem –
moraram num Antônio Bezerra sem calçamento e sem luz elétrica e, na seca de 58,
também sem água, sendo socorridos pelos vizinhos Libero e Carmelita, que tinham
um cacimbão abençoado, o único que não secava nunca; a rotina em sua mercearia
e a lida da Maura com os afazeres do lar e costurando para complementar a renda
da casa; da volta ao Paracuru, convidado a ingressar na política, como vereador,
relutando no início, mas cedendo depois e sendo eleito duas vezes; a luta para levar
energia, construir estradas, grupos escolares e postos de saúde – aliás, a sua
casa fazia as vezes de posto de saúde, no qual dona Maura cedia até a sua cama
para que as mulheres pudessem ser atendidas pelo ginecologista: “Ô mulher
danada essa minha Maura!”
Lembrou-se da primeira vez, lembrou-se
de sua vez e lembrou-se daquela derradeira. Disfarçou em lenço uma apertura,
pois “para quem ama, a ausência é a mais fiel das presenças”
Mas afinal, são 100 anos, e ele diz: “Tem
até tataranetos!”. Como se orgulha o seu Zé. Cruzando a bagaceira, volta-se
para o velho engenho, atirando na lata garapa boa, ordenando o ponteiro, empurrando
castanhas com o caxeador, saboreando o doce da vida, “o visgo que aqui o
prendeu”, contando histórias de saudade para a “guajazada” que o ama, o admira
e o chama ternamente de “vô”. Parabéns, meu amigo Zé Guajá.
O Mercadinho Freitas e a "casa grande" do Jardim
A escola municipal construída por incentivo do vereador José Rodrigues de Freitas
(com doação do seu terreno), no Jardim, distrito do Paracuru.
D. Maura Braúna, esposa de Zé Guajá,
que hoje empresta o nome para o Posto de Saúde em Jardim.
O engenho do seu Zé, do mesmo jeitinho que eram
os engenhos há cem anos (com exceção do motor, é claro...)
José Rodrigues de Freitas, vulgo Zé Guajá,
quando presidente da Câmara de Vereadores do Paracuru.
Zé Guajá no batente, auxiliado pelas bisnetas Luana Rachel, Liana Rebeca e Sophia Dádiva.
Talvez o único registro de uma costumeira e demorosa conversa de balcão minha com o seu Zé,
prato cheio na vida de qualquer cronista.
Lembra minha infância!
ResponderExcluirNetto bom de prosa! Vivi todas as palavras.
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