sábado, 7 de fevereiro de 2015

"Os 100 anos de Zé Guajá", crônica de Raymundo Netto para O POVO


6 e meia. O Sol, espalhando o lume no breu, faz gemer o penoso cantar de galo. Um motor saracoteia a manhã. Levanto da rede fria de sereno, piso no vermelho xadrez e procuro lançar preguiças à areia branca da levada.
Na frente da casa grande, onde a piçarra redemunha, chego empunhando o café de caneca, sento na balança de ferro, ao lado do balcão do “mercadinho Freitas”, onde se debruça, todos os dias, aquele homem em botões de peito aberto, de face redonda, bigode ralo e olhos úmidos, penteando os fios negros de cabelo para trás, ou a tamborilar um xote do Gonzagão, na rádio Cultura do Paracuru.
Como se fora o apito de trem, as memórias do menino de seu Neco e dona Naninha despertam: “Eu ainda estou por aqui, não estou?”
José Rodrigues de Freitas, o Zé Guajá – apelido que recebeu devido ao tom avermelhado da pele, similar à cor do caranguejo –, traz nos ombros, em 2015, o peso leve de Centenário.
Catando uma manga caída naquela hora, lembrou-se do tempo de criança, destocando e preparando a roça na fazenda Santa Rosa, do seu Quinca. Aprendera a ler na “Carta do ABC”, sob o amor da mãe-professora-parteira. Quando rapaz, além de dançarino de latadas – arriscou um arrasto na chinelinha –, corredor e valente campeador de reses perdidas, descobriram que era negociante dos bons, quando juntou um casal de jumentos, uma vaca, um bezerro e, num troca-troca sem gastar nenhunzinho, acabou comprando terreno para a família morar. Mas o Zé, inquieto e namorador que era danado, pediu ao Jaime para fazer um terno bonito, pois ia arredar pé, sem tutu mas cheio de esperanças, para Fortaleza. Mas veja como se dão as coisas: justamente por conta da demora na feição desse bendito terno, acabou se tornando sócio de um comerciante da região, o Zeca Batista, e, mais importante, pouco depois, ganhou na maior sorte o coração de sinhazinha Maura Braúna, moça querida e filha de dono de terra. Onde é que o Zé podia imaginar um troço desses? Aninharam-se em uma casinha-mercearia – que infelizmente nem existe mais – e, com o tempo, a família: Maurício, Fátima, Fatimy, José Nato e Lúcio – Sérvulo viria mais tarde, no colo redobrado de Maura.
O Zé estacou um pouco seu lembrançar para atender um molequinho na compra do litro de farinha e de goma, levando, de quebra, um pirulito. Abotoou a camisa, colheu as moedinhas entre dedos nodosos, anotou qualquer coisa num caderno e, despachado o freguês, continuou:
De primeiro, as idas e vindas a cavalo e em trem para comprar mantimentos em Fortaleza, que só chegariam no comboio; o surto de varíola em 47, quando decidiu ir sozinho à capital buscar ajuda e voltou carregado de vacinas e com a missão de ele mesmo aplicá-las na comunidade; da ida para Fortaleza com a família para os filhos estudarem – moraram num Antônio Bezerra sem calçamento e sem luz elétrica e, na seca de 58, também sem água, sendo socorridos pelos vizinhos Libero e Carmelita, que tinham um cacimbão abençoado, o único que não secava nunca; a rotina em sua mercearia e a lida da Maura com os afazeres do lar e costurando para complementar a renda da casa; da volta ao Paracuru, convidado a ingressar na política, como vereador, relutando no início, mas cedendo depois e sendo eleito duas vezes; a luta para levar energia, construir estradas, grupos escolares e postos de saúde – aliás, a sua casa fazia as vezes de posto de saúde, no qual dona Maura cedia até a sua cama para que as mulheres pudessem ser atendidas pelo ginecologista: “Ô mulher danada essa minha Maura!”
Lembrou-se da primeira vez, lembrou-se de sua vez e lembrou-se daquela derradeira. Disfarçou em lenço uma apertura, pois “para quem ama, a ausência é a mais fiel das presenças”
Mas afinal, são 100 anos, e ele diz: “Tem até tataranetos!”. Como se orgulha o seu Zé. Cruzando a bagaceira, volta-se para o velho engenho, atirando na lata garapa boa, ordenando o ponteiro, empurrando castanhas com o caxeador, saboreando o doce da vida, “o visgo que aqui o prendeu”, contando histórias de saudade para a “guajazada” que o ama, o admira e o chama ternamente de “vô”. Parabéns, meu amigo Zé Guajá.


O Mercadinho Freitas e a "casa grande" do Jardim


A escola municipal construída por incentivo do vereador José Rodrigues de Freitas
(com doação do seu terreno), no Jardim, distrito do Paracuru.


D. Maura Braúna, esposa de Zé Guajá,
que hoje empresta o nome para o Posto de Saúde em Jardim.


O engenho do seu Zé, do mesmo jeitinho que eram
os engenhos há cem anos (com exceção do motor, é claro...)


José Rodrigues de Freitas, vulgo Zé Guajá,
quando presidente da Câmara de Vereadores do Paracuru.


Zé Guajá no batente, auxiliado pelas bisnetas Luana Rachel, Liana Rebeca e Sophia Dádiva.


Talvez o único registro de uma costumeira e demorosa conversa de balcão minha com o seu Zé, 
prato cheio na vida de qualquer cronista.

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