sábado, 21 de fevereiro de 2015

"Negada Solidão", de Raymundo Netto para O POVO (21.2)


A solidão é o retiro em si mesmo. O monólogo diante da plateia vazia. A arena devoradora de leões. A nascente da criação. A inspiração de capela. A sugestão da palavra contida. A cortina cerrada na janela. O soluço de medo. O piscar do olho. A luz das estrelas quando do nascer do sol.
Muitos não se permitem a companhia da solidão. Tentam se lhe escapar, entretidas em birôs abarrotados de trabalho ou em risonhas mesas de bar, nas constantes reuniões de grupos, na conexão ininterrupta das mídias e redes sociais, cercados de amigos eletrônicos que, como nuvens e sonhos, os deixam no primeiro soprar de vento. Entretanto, inconscientes, aproximam-se cada vez mais dela, só que de mãos vazias, sem nada lhe oferecer. A solidão exige completude, dedicação e, acima de tudo, verdade!
No exercício da solidão, deve-se permitir o autoabandono, o salto de paraquedas – ou sem ele –, o caminhar doloroso nas brasas de pânico daquilo que desconhecemos ou do que tememos perder ou mudar. É mais fácil lançar as nossas chagas num retrato a óleo de Dorian Gray, do que permitir o mergulho dentro de si, ir além das rugas e acnes, explorar as dobras e depressões íntimas, geralmente escuras e úmidas, aqueles infernos que nos revelam e nos assemelham ao propalado Deus da creação, pois, como espelhos distorcidos, nos amedrontam, nos causam estranhamento diante da máscara ridícula e preenchem de ilusões a nossa vã identidade.
O ser humano é um átomo diante do grande universo. Talvez menos do que isso, se eu tivesse sido melhor aluno de Física, o que não fui, assim como consegui não aprender tudo aquilo que, por um motivo ou por outro – geralmente imposição era o grande motivo – decidi não levar comigo, assim como o xadrez e a datilografia.
Escolhas. A nossa vida é determinada por elas. Nada nos chega que não tenhamos construído (leia-se “escolhido”) ao longo dos anos. Vale responsabilizar-se pelas consequências que atribuímos à má sorte ou àquele(a) criatura que nunca nos deu a mão ou negou o seu amor.
Carregamos nos ombros o entulho dessa má elaborada engenharia. E ele pesa, cega, sufoca e, se nós deixarmos, não nos abandona.
Não raro, por não suportar a si mesmos, os solitários necessitam de lugares com espaço, ar, pouca luz e muitos ruídos. Saem à noite, em fuga do seu espinhoso encontro consigo mesmo, e sentem carência de pessoas, muitas delas. Encostados em paredes, feito espectros algemados em correntes de angústias, não são notados nem ouvidos. Incapazes de pensar ou decidir um futuro – não que precise fazê-lo, pois quem é solitário priva de uma liberdade à beira da indecência –, torna-se um observador a viver a vida do outro, alimentando-se das sobras das alegrias e emoções alheias, em simbiose com esses estranhos comuns, num consortismo antihedonista social.
Noutros dias, a seu redor, apenas os grilos lhe despertam do andar superior dos pensamentos e penosos psiquismos. É quando ouve a canção que diz ser a sua alucinação suportar o dia a dia e o porvir da lembrança do corpo delirado que cai do oitavo andar.

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