segunda-feira, 12 de maio de 2014

Resenha de "Criaturas", por Anallies Borges, graduada em Letras Português/Literatura, professora e atriz, para o site Intocados


Criaturas, livro de Rochett Tavares, lançado pela La Barca Editora, vencedor do Prêmio Otacílio de Azevedo (reedição), promovido em 2010 pelo Governo do Estado do Ceará, traz como proposta a narrativa de contos de horror que nos fazem imergir no universo do desconhecido, levando-nos a um estado de perturbação não só pela forma surpreendente com que cada enredo se apresenta, mas também pelo fascínio de desvendarmos os mistérios que se esgueiram de nós em cada frase escrita.
O livro apresenta como título a proposta do que será compartilhado no decorrer de seus oito contos, ou seja, um convite a mergulhar num universo das histórias de horror, apresentando-nos não só o lado sujo das criaturas “amaldiçoadas” por um aspecto sobrenatural sombrio, mas também o incômodo que é perceber que se pode sentir tal asco por seres humanos cada vez mais desumanizados e transformados por seus atos obscuros em Criaturas.
Nascido na cidade do Rio de Janeiro (RJ), em 1975, Rochett Tavares tem sua estreia como escritor com a obra Criaturas, a qual se apresenta como o resultado de um interesse que surgiu ainda na sua infância: aventuras fantásticas. O que era um passatempo tornou-se uma necessidade de expor através de seus próprios escritos a influência dos diversos escritores de fantasia que teve no decorrer de sua trajetória de leitor, mas na presente obra a que me proponho resenhar há, sem dúvida, a forte influência e inspiração de H.P. Lovecraft, no que diz respeito, principalmente à construção da narrativa.
Não se trata, portanto, de um romance, mas sim da junção desses contos que, na verdade, se apresentam como capítulos, páginas de um destino que se esconde num lado oculto que, durante dias e noites ao redor do mundo, vai sendo cumprido por vezes com a ajuda do próprio homem, através de sua curiosidade, malícia ou ingenuidade.
As narrativas, na sua maioria, passam-se em locais da Europa ou dos Estados Unidos em épocas ou contextos diferentes. Pode-se perceber, no entanto, que cada conto traz um enfoque à forma de construir a narrativa de horror. A preocupação, portanto, se concentra em: mostrar um cenário obscuro com um enredo que toca o sobrenatural, mas cujas ações humanas tornam-se o verdadeiro horror a ser ressaltado sem eufemismos; vasculhar, através da psique humana, o horror particular vivenciado pelos personagens; apresentar o elemento sobrenatural, desconhecido, como algo que faz parte da realidade e que se cumpre como destino muitas vezes através da colaboração do próprio homem.
Nesse âmbito, pode-se perceber que, em muitos contos, são abordados seres escusos (sobrenaturais ou não), que dominam a escuridão das ruas, os recônditos dos bairros, sempre havendo uma mescla de mistério em que, por mais que enxerguemos claramente a presença do elemento fantástico em alguns contos, em outros, os desfechos nos apresentam como um enigma a ser decifrado ou complementado pela nossa leitura.
O foco narrativo varia, podendo ser de narrador em primeira pessoa a narrador-observador onisciente. Em “Retrato de Família”, cujo narrador é personagem há uma visão parcial do que está sendo narrado, quase como uma evocação de imagens, lembranças que se misturam num fluxo de consciência, em que aos poucos são reveladas respostas ou lembranças reticentes. O horror se apresenta como o grande conflito do narrador-personagem que participa da Segunda Guerra Mundial, perdendo sua visão romantizada da vida e mergulhando no absurdo frio de uma guerra até aquele momento totalmente sem sentido.
“A comporta de saída escancara-se na praia, abandonando os infelizes à frente, à mercê de uma implacável salva. Como fardos de feno arremessados num celeiro, o que outrora eram jovens cheios de vida hoje amontoam-se uns sobre os outros, deixando...
A água gélida espeta meu corpo como pequenas lanças, envolvendo membros antes vigorosos com um torpor convidativo.” (Criaturas, p. 17-18)

As cenas do conflito que ocorre nas praias de Normandia no Dia D da Grande Guerra são descritas de forma detalhada, misturadas à visão de angústia do personagem em encontrar-se em tal situação desesperadora para ele. Trata-se inicialmente de um horror psicológico que, todavia, também será tocado pela presença do sobrenatural num conflito que ultrapassa a compreensão do que é realidade.
Já no segundo conto da obra, “Visita ao Necrotério”, que se passa na França, a narrativa em terceira pessoa nos conduz à mente perturbada de Maurice Lacroix, um investigador de polícia, que tenta descobrir o autor de uma série de crimes que se assemelham a outros cometidos décadas antes. Tal personagem se lança a desvendar a mente do psicopata que procura, mas o leitor é surpreendido pela dúvida que sonda o horror particular do personagem que, por vezes, se surpreende com a riqueza de detalhes que ele adivinha, quase como lembranças do crime que investiga. A luta trágica do personagem se estabelece pela tentativa de manter a sanidade em meio à investigação, ao mesmo tempo em que vivencia e se surpreende ao se defrontar com o desconhecido em sua mente.
“Enquanto vasculha as entranhas do cadáver, Maurice Lacroix é assaltado por emoções desconhecidas. O roçar de seus dedos na matéria estática e gélida do cadáver provoca ondas de um calor espasmódico, como se a carne morta da jovem desconhecida à sua mercê transmitisse-lhe os impulsos próprios às carícias feitas em um objeto vivo...” (Idem, p.82) 

Em outros contos, como em “Bom Garoto”, o foco narrativo também em terceira pessoa, apesar de onisciente, opta por levar o leitor a desvendar o enigma quase em parceria com os personagens. Por sinal, tal episódio traz um momento em que a crueldade da “criatura humana” é posta em xeque, assim como nos surpreende perceber que os seres inumanos podem expressar atitudes mais humanas do que nós.
A obra guia o leitor a um mundo desconhecido, cuja narrativa, por vezes propositadamente reticente, conduz a leitura para um nível da curiosidade, quase como instigando o interlocutor a complementar tais “lendas” com testemunhos seus. Mesmo quando o foco é em terceira pessoa, a narrativa, por seu mistério, nos parece um apanhado de testemunhos, como um quebra-cabeça para que nós possamos desvelar um segredo maior que está oculto, algo que se esgueira pelas sombras da noite. Cada rua, cada beco, cada fato histórico parece ter como pano de fundo a presença constante desses seres sobrenaturais, porém não se exime o homem de sua crueldade em determinadas atitudes que podem influenciar no desfecho desse destino oculto.
O que nos deixa reflexivos é até que ponto as criaturas podem ser mais humanizadas do que o próprio homem em determinados contos, pois elas são, por vezes, levadas pela necessidade que a maldição lhes impõe. Os atos cruéis tornam-se uma luta pela pseudossobrevivência desses seres que estão no limiar de uma pseudoexistência. A morte e a vida são uma tênue linha seguida por eles, que não têm opção e se submetem a perder a identidade humana que um dia tiveram para seguirem essa nova espécie de existência; outras vezes se entregam a essa exigência dessa nova forma de coexistir com o homem, deixando-se levar pelo instinto, mesmo que, para isso, suas ações se tornem dor para outrem.
Contudo, nota-se também que a dor, o egoísmo que guia essas novas formas de “não-vida” pode se apresentar no inconsciente de todo ser humano plenamente vivo, tanto por atos insanos como meramente egoístas, mostrando que o pavor e as tragédias também existem (e, por vezes, primordialmente existem) por conta da própria ação do homem.
A coletânea de contos traz, nesse sentido, esse incômodo ao coração do leitor, que percebe que por trás de toda dor há, nem que seja ínfima, a participação do próprio homem e que as criaturas sobre as quais se pode jogar a responsabilidade de atos considerados maléficos, por vezes são meras observadoras ou se aproveitam do que a ocasião oferece para se manterem “vivas” nessa nova realidade à qual foram imersas por sua maldição.
A obra, portanto, pode ser lida por qualquer pessoa que esteja disposta a imergir nesse submundo de mistérios incontados, que nos são compartilhados para que possamos refletir também sobre nossos próprios atos. Os segredos, os sussurros das personagens sobre o que presenciaram, vivenciaram na escuridão, essas verdades contadas em Criaturas nos fazem refletir sobre nossos valores no dia a dia, percebendo que no espírito está, por vezes, a saída.


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