segunda-feira, 31 de março de 2014

"Literatura Para Quem?", crônica de Raymundo Netto, para O POVO (29.03)

Foto: André Martins, no "Encontro com o Escritor" do Cuca da Barra do Ceará

Nunca gostei ser chamado, ou às vistas, de intelectual. Claro que o criar, como o escrever, é ação intelectual, pois de empregar mente e espírito. Por outro lado, quando o intelectualismo prima da fria e crua racionalidade, perde para mim toda a graça. Prefiro que me vejam "artista", como me gosta sê-lo, mesmo apoucado, neófito,ou seja lá como for ou quiserem. A arte, cuja matéria-prima é a palavra, esta sim, me toma do resto do ciumento mundo.
Os intelectuais, de forma geral,  leem de tudo e escrevem sobre, discursam, trocam ideias, confabulam, e pela humanidade da qual não escapam — embora uns ambicionem emergir a ela em sobranceria estomacal — glorificam-se de deléveis vitórias em debates cerebrais. Há quem  precise deles, não resta dúvida, mas longe de mim, dessa forma não sou e anuncio, resultando em estranhamento, até em antipatia, por alguns a entenderem como arrogante o meu desapego à honraria que sequer mereço nem faço questão.  
Confesso: não gosto de ler de tudo; por das vezes, escapo-me às leituras recomendadas. Dias há a desligar-me de todas as coisas do mundo: política, economia, conflitos mundiais e violência — páginas de nunca ler nem assistir, bastantes as de me chegar involuntárias.
Enfim, sou apenas assim, ligado a saber mais, e não só, das coisas do âmago das gentes, de suas vidas corriqueiras, das coisas engraçadas de não se rir, ou mesmo daquelas de se lascar de rir, mas de íntimas humanidades, folhas de não se deixar levar ao vento.
Outros há que fazem pirotecnia da sua literatura. Escritores de preferir — e precisar malsofridamente — o apavonado reconhecimento de intelectual. Acham-se cultos, no sentido erudito — quase exclusivo — do termo, e escrevem com monotonia ou ilegibilidade, em experimentalismos a acobertar-lhe a ausência ou excessos de conteúdo pelo garimpo artificial do vernáculo. Curiosamente, se enfurecem com o não reconhecimento de seus palavrórios a deixar o leitor a ver navios, isto é, se inda conseguirem proporcionar ao menos esse deleite.
Sou livre, graças a Deus ou ao seu primo: não leio nada que não seja do meu gosto. Dou-me sempre, porém, a chance de arriscar ou de surpreender-me — felizmente, muito acontece. Não sou ensaísta, resenhista, nem crítico. Leio por gostar e pouco me impressiona assinatura de autor. Na minha simples, talvez ignorante, visão das coisas, conheci picassos que não deixaria enfear as minhas paredes.
Acho lindo quem lembra e sabe de cor poemas inteiros, frases pungentes, nomes de personagens e títulos de livro. Tenho vários amigos queridos de ser assim. Adoro escutá-los e aprendo com eles. Eu, pobre desmemoriado a não saber nem o número do próprio telefone, sem pressa de publicar ou de me chegar onde não sei, por aqui, atrevo-me no perigoso direito — quase um delito — de pensar alto e ler livros. Entre tantos, na primeira vez de ler “Os Maias”, quanto mais mergulhava na trama, mais ânsias me tomavam. Motivo? A obra precipitava uma conclusão. Passava dias a deixá-la quieta, de canto, diante do temor de encarar o instante do cerro da quarta capa, tão companheira e bela me era a sua leitura nos dias chatos, de quase todos, enjoado que sou de um mundo inteiro a provar-me sempre que a ficção, enquanto arte, é a única mentira digna de indulgência.


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