sábado, 23 de julho de 2011

"Lysia Bernardes me ensinou o caminho", por Isabel Lustosa, para o Diário do Nordeste

Lysia Bernardes (1924-1991)


O começo de minha vida como funcionária do Ministério da Cultura, entre o final de 1983 e o começo de 1984, foi de duro aprendizado. Passar do ambiente descontraído, alegre e amistoso da universidade - onde eu fora aluna da graduação e depois da pós, dedicando minha vida quase que exclusivamente aos estudos - para o cotidiano tedioso de uma repartição pública foi penoso. Estar ali por sua própria conta e risco, sem sua turma, digamos assim, cumprindo jornada diária de oito horas, assinando ponto e tendo que conviver com pessoas que nada tinham a ver com você era uma meia morte. O convívio com algumas almas menores que povoam as repartições, sempre dispostas a lançar armadilhas que te levem a se indispor com os outros foi uma experiência para a qual eu não estava preparada e que me desconcertou. Desenvolvi a maior mania de perseguição. Fiquei quase paranoica.


Hoje atribuo o que senti naquele ambiente à minha falta de experiência, ao fato de ser recém-chegada em um lugar em que era duas vezes forasteira: tanto por não ter nascido no Rio, quanto porque lá já estavam funcionários que ali trabalhavam há alguns anos. A chegada de outros colegas historiadores representou um grande alívio, mas o mundo do trabalho é o mundo do trabalho, e, mesmo entre estes, não se está livre da competição. Um colega ambicioso (de pobres ambições) que chegara logo depois de mim, tentou, a todo custo me indispor com o chefe e quase conseguiu. Felizmente, eu já tinha adquirido algumas estratégias de defesa. No entanto, foi em meio a esse choque com a realidade da natureza humana que fui alvo da ação mais generosa e desinteressada de toda a minha carreira.


Eu me dispusera a organizar um seminário chamado "Bairros do Rio: em busca de uma identidade" mas, sem nunca ter organizado algo no gênero, não sabia por onde começar. Não sei por quais caminhos entrei em contato com a professora Lysia Bernardes, um dos maiores nomes da geografia no Brasil de então e ela se dispôs a me dar algumas dicas. Ela foi me encontrar no Museu, sentou-se a meu lado na minha mesa e começou a arrolar os nomes dos melhores pesquisadores, nas mais diversas áreas, que estudavam o Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que ouvi falar no então jovem geógrafo Maurício Abreu, e nos arquitetos Carlos Nelson Ferreira dos Santos e Sergio Lordello (os três, aliás, precocemente desaparecidos), além de outros nomes que, juntos, formavam um elenco de gente da maior competência. O que fez daquele primeiro seminário um grande sucesso, merecendo ampla cobertura da imprensa.

Não me lembro se agradeci devidamente à Profa. Lysia Bernardes pelo que tinha feito. Poucos anos depois, em 1991, ela e o marido, o também geógrafo Nilo Bernardes, morreriam em um acidente de carro. Na verdade, só o tempo é que me fez perceber o quanto seu gesto foi generoso e desprendido. Ela era uma intelectual nacionalmente conhecida; fora até o Catete encontrar uma jovem e inexperiente pesquisadora que ela nunca tinha visto antes e fornecera-lhe a lista de todos os seus contatos, com as informações valiosas sobre de que maneira cada um deles poderia contribuir. Informações tão valiosas que, muitos anos depois, ainda me são úteis.


Essa história me veio à lembrança por conta de ter sido questionada por indicar pessoas para coisas que acho que são indicadas mesmo que elas não correspondam na mesma medida, ou seja, me indicando também. Entre os nomes que costumo sugerir para publicações, seminários, etc. há mesmo um colega, pessoa competente e agradabilíssima, que não prejudica nem fala mal de ninguém, mas que não compartilha informação nem de nome de mecânico de automóvel. É de uma sovinice total em conceder qualquer dado a um colega: um texto interessante que seja relacionado ao assunto com que o outro está trabalhando; a localização de arquivos que ele sabe onde está e que sabe serem fundamentais para a pesquisa do outro; o nome de um autor bom para aquela abordagem; de uma instituição que possa receber um assistente de pesquisa do colega, etc. etc. Essa avareza informativa é tão radical - talvez já seja até uma mania - que chega a ser paralisante e contribui para seu isolamento, pois, ele nunca organiza seminários para não prestigiar colegas e também para não revelar seus contatos.

Eu não. Eu indico, sugiro, insisto nos nomes que acho bons. Gosto de compartilhar esse tipo de informação. Por quê? Não que eu seja uma criatura desprendida e que não guarde mágoas de pessoas que não foram muito legais. Aliás, essas, confesso, prefiro não indicar. Mas, porque acho que isto faz parte da economia das trocas simbólicas, para usar uma expressão que aprendi quando queria ser antropóloga. Melhor dizendo, isso faz parte da economia das relações pessoais. E esse tipo de partilha de conhecimentos tem retorno. Nem todo o mundo é como meu colega, avaro de informações. Se nem todos são generosos como Lysia Bernardes, muitos gostam de fazer esse intercâmbio que é muito bom para a renovação da cena intelectual.


Quando indico nomes penso também na qualidade do produto que pode resultar dessa minha indicação. Pois tem tanta coisa medíocre tida como boa circulando por aí, tanto falso talento ou talento de superfície sendo incensado que o que eu puder fazer para que pessoas e trabalhos bons tenham maior visibilidade e chance de reconhecimento, farei. É a minha modesta e desinteressada contribuição para a melhoria da qualidade da vida intelectual no mundo em que vivemos.

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