Jardim de Monet
Muitas vezes acho que podemos sentir a alma de uma pessoa pelo seu jardim. Se assim for, o jardim de dona Lúcia mostra seu espírito encantador, religioso, poético, alma que aceita o novo, mas amiga da tradição porque seu jardim recebe com o mesmo entusiasmo as plantas indígenas e as exóticas. Jardim imenso, localizado num sítio à beira da lagoa de Messejana, em torno de uma casa bem antiga, com vista que olha as águas doces. Dona Lúcia tem orgulho de seu jardim, conhece-o muito bem, ama-o, e gosta de conversar sobre seus acontecimentos, que são muitos: uma raposa que vem atrás dos patos, marrecos, abarris, pés-duros e das galinhas e seus pintinhos, ou um uma sinfonia de passarinhos pela manhã... alguma inflorescência exuberante, ou uma planta desconhecida com que lhe presentearam... conta que, uma madrugada, teve um terremoto e o vigia noturno bateu à janela da casa, assombrado: Dona Lúcia, os cajueiros estão caminhando!
Às vezes, quando a visito, antes de me despedir saio com o jardineiro, José Branco, a colher flores para a minha mesa na varanda. José, com seus olhos verdes e acurados, sabe os nomes de todas aquelas inúmeras plantas; perguntei-lhe pelas árvores e ele, sem hesitar, citou mapueira, pau-d’arco, buriti, tamarineira, graviola, cajarana, fruta-pão, pau-branco, angelim, mangostão, abricó, abiu, açaí, pupunha, macaúba, ingazeiro, mangabeira, umbuzeiro, jenipapeiro, cacau, cupuaçu, oiticica, jatobá, lichia, acalipeiro... palmeira imperial, a “exagerada”... Um dia, ganhei de presente uma cesta com cajaranas, rudes, feiosas, mas as maiores delícias de lembranças. As flores são também em grande variedade, e eu digo, José, aquela ali! e ele cita o nome, torna-mar em florinhas vermelhas, roseira-menina, murta com floração branca perfumada, na primavera... hortênsias, mini-lacres, bogaris, Aquela é colônia, para chá, ele diz. Ali, russélias, mussândrias, viuvinhas... Gosto de fazer um ramo com helicônias de vários tipos, tracoás, caetés fantásticas, asas-de-arara, misturadas a bromélias originais, e pacaviras com seus pendões parecendo milho, em belas cores. Uma placa de madeira talhada denomina: Jardim do Éden.
Pelos caminhos salpicados de flores de flamboyant, árvore de minha meninice, flores que meus pezinhos de criança pisaram, as placas de identificação das espécies vão surgindo: Calliandra surinamensis, Caliandra, Família: leguminosa mimosóideas; ou Eugenia Uniflora, Pitanga, Família: mirtáceas. Com o mesmo cuidado de preservação do conhecimento e da memória, dona Lúcia emoldura e espalha pelos jardins os seus poemas preferidos: “Oh, que saudades que tenho da aurora da minha vida, Da minha infância querida que os anos não trazem mais, Que amor, que sonhos, que flores, naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais”... Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias que também é meu eleito, até escrevi romance em que ele é o tema, ou Bilac e suas estrelas que falam.
Também um jardim das virtudes, santos em oratórios aqui e ali, com plaquetas contando a história de suas vidas ou as preces dedicadas a eles, como o esperançoso responsório de santo Antônio, “recupera-se o perdido, rompe-se a dura prisão, e no auge do furacão cede o mar embravecido”... Santos de suaves evocações, Mãe Rainha, Pai Eterno, santa Rosa de Vité, são José na capelinha, Cícero atrás da igrejinha, e João Batista perto das águas, lugar mais adequado não haverá.
O José Branco e o Francisco cuidam do viveiro onde moram aves e jabutis, o Osmar limpa. A horta, verduras fresquinhas e saudáveis, fica por conta do Zé Preto e do Osmar, e por ali andaram meus netos a descobrir o que é couve, coentro, hortelã. As meninas lindas, tão meigas, Emília e Zuleide, dão de comer às aves de estimação e riem dos cabritinhos. Mas não são só esses habitantes e esta escritora bucólica que andam por ali, pode-se encontrar às vezes um psiquiatra perdido, um bando de soins, uma editora programando seus livros, uma fogueira, um general a rezar... E afinal, rematando o jardim, a musa fascinante de José de Alencar, a própria Iracema feita em pedra, evocando o dia em que a índia encontra a flecha envolta em ramos e flor de maracujá, sinal para que dali ela não siga mais seu amor. Messejana, onde Iracema foi abandonada, com sua jandaia. E as jandaias, os sabiás, o periquito estaliano, as graúnas, os jacus, sanhaçus, cancões, aprendem a rezar: “Glorioso santo Antônio, grande amigo do Senhor, escutai nosso pedido, sede nosso protetor!”
Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras.
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