terça-feira, 30 de novembro de 2010

"O Clube do Bode", de Audifax Rios para O POVO

O Clube do Bode fecha o livro de atas de número 451, com relatórios assentados desde o franzino caderninho inaugural, lá se vão oito anos e lá vai pedrada. A confraria, sem nome, destino ou pretensão, estava em fase embrionária, apenas reuniões de poetas, músicos, jornalistas, amigos e leitores da Livro Técnico que iam à sede na rua do Dom Joaquim nas tardes de sexta para jogar conversa fora. Os pioneiros: Barros Pinho, Almir de Castro, Mariano Freitas, Giordane Carvalho, Juarez Leitão, Tarcila Machado, Hélio Catunda e outros poucos. O anfitrião, Sérgio Braga, o livreiro, cuidou de trazer feijão verde de casa e abriu, generosamente, a adega particular. E o caldo engrossou aos sábados com outras personas que, em torno do então senador Lúcio Alcântara, vinham a fim de discutir sobre política.


Pintou, então, a ideia de batizar a estranha confraria, informal e sem ideário, um nome besta que fosse, a título de identificação ou mesmo referência de informação. O nome surgiu da cabeça do poeta do Parnaíba, criado nas securas dos caratiús: Clube do Bode, e assim ficou. Surgiu como se batizássemos um time de botão ou um rebanho de nuvens feito carneirinhos de sonhos. Hoje procuram-se justificativas de roupagem social, associando bode à resistência; cá pra nós era mais uma conotação fuleiragem para uma patota heterogênea que apenas pretendia descontrair, fofocar, conversar miolo de pote. Mas que assim seja, fica bem esta casaca intelectualizada e ideológica, afinal o Clube do Bode nasceu na calçada de uma livraria, de uma editora.


Encontrado um nome, a coisa pesou e pensou-se logo em transferir responsabilidades. E aí coube ao Sérgio Braga um dos dois únicos cargos, o de Pai de Chiqueiro Mor, que seria, em termos sérios, o de presidente da agremiação. Com isto sugerimos um livreto para apontar as presenças e registrar alguma coisa digna de nota que porventura acontecesse naquele pedaço de calçada. Então nos autonomeamos, democraticamente, para o honroso cargo de Chiqueirador, trocando em miúdos, o secretário. Com uma justa defesa: éramos (porque novel abstêmio) a única pessoa capaz de, no dia seguinte, dar conta do que se havia passado durante a noite. E foi inaugurado o famigerado livro de atas.


Na verdade, o relicário da anti-ata, este conjunto de relatórios está mais para uma miscelânea, à moda das que as moças prendadas e suspirosas de antanho faziam lá pelos anos dourados, quarenta, cinquenta... Parece um almanaque, tem de um tudo: recorte de jornal, desenho, retrato, santinho de político, bilhete de namorado e receita de bolo. Às vezes pende para o humor negro e não deixa de dar suas alfinetadas, puxando o colarinho de quem não quer andar nos trilhos. E tem sobrado pro secretário, até ameaças cartoriais.


Tentamos democratizar a escritura de tais relatos, porém ninguém quis topar a parada. Mesmo assim já fomos substituídos nas raras visitas à Santana por Erasmo Pitombeira, João Soares Neto, Giordane Carvalho e Falcão. Ultimamente a missão vem sendo fielmente cumprida por Narcélio dos Anjos e Tatiana Ribeiro. Já vou pra minha terra bem mais tranquilo. Os bodes e cabritas estão em boas mãos.


* Audifax Rios, para O POVO

sábado, 27 de novembro de 2010

"Soledad no Recife", de Urariano Mota, por Márcia de Oliveira


Urariano Mota:

A Cautelosa Recriação dos Duros Tempos e o Sorriso Esperançoso de Soledad

...Porque “tudo quanto se destina

a surtir efeito nos corações,

do coração dever sair”. (Goethe)

Ao ler Soledad no Recife, romance de Urariano Mota, nos deparamos com uma difícil situação, ao descobrir que palavras são pobres e insuficientes para traduzir a grandeza do texto, a perfeita recriação de uma triste e cruel estória e, principalmente, o brilho do sorriso cheio de esperança de Soledad Barrett Viedma (a Sol), uma jovem militante paraguaia, assassinada junto com seus companheiros durante os duros tempos do regime militar pós-64, depois de ser covardemente entregue por seu companheiro Daniel (cabo Anselmo), namorado e pai do filho que esperava.

O romance, histórico, mas com ares de biografia, que traz como pano de fundo a ditadura militar brasileira, mais precisamente os duros tempos do governo Médici, quando militares, descrentes do sistema democrático, defendiam que um regime de força, cerceador das liberdades políticas e constitucionais fosse a “melhor” coisa para o Brasil, atrela-se aos mais completos e surpreendentes recursos estilísticos que resultam numa mistura perfeita de ficção e realidade.

Através do que chamo de uma grande sacada, a de acrescentar um narrador-personagem fictício, de estilo mavioso e apaixonado, que nutre um amor platônico por Soledad, Urariano recria, minuciosamente, um contexto histórico real, acompanhado de uma ficção demasiado impressionante onde, em muitos momentos, me senti pertencente ao texto, como se vivesse àquela época. Impressionei-me com as fortes imagens do sofrimento de jovens idealistas que tiveram suas vidas interrompidas, precocemente, em nome do sonho de se construir um mundo melhor, chegando até mesmo a sentir suas angústias e a visualizar seus sonhos e medos.

O sentimento platônico despertado pela bela e revolucionária protagonista em nosso narrador é um detalhe que adoça um pouco a estória, porque consegue suavizá-la; torná-la menos dura e ainda mais especial. Como é possível alguém falar de amor, de forma tão terna e poética, em meio aos anos de chumbo? O escritor, jornalista e agora, com certeza, POETA Urariano consegue. Como conceitua muito bem Flávio Aguiar, no texto de apresentação do livro: Soledad no Recife é “um romance de amor que se passa em tempos contrários ao amor”. Em um tempo em que prevaleciam o medo, o silêncio e a falta de liberdade. Um tempo em que a condição humana não era respeitada. Um tempo em que o amor era visto como bobagem, alienação. E, mesmo assim, um tempo em que até o mais violento gesto, a mais cruel e sanguinária repressão não foi capaz de impedir que jovens, socialistas, erguessem suas bandeiras e lutassem, arriscando suas vidas, em nome da esperança de dias melhores e, não obstante, no calor da luta armada, sucumbissem aos desejos de amor. Parafraseando, oportunamente, as palavras de Urariano, devemos reconhecer que aqueles jovens, àquela época, eram verdadeiras “sensibilidades agudas e inteligências sufocadas”.

“Gostaria de ter junto a mim sempre a visão que dela tive nesse encontro. Um regalo para os olhos. Quem a viu somente ali, sempre a recordará como uma pessoa carinhosa, guapa e linda em mais de um sentido. Para os olhos, para a inteligência, para o espírito, para o coração”. (Soledad no Recife. Pág. 106)

Onde termina a ficção e começa a realidade? Me fiz esta pergunta várias vezes ao ler a estória contada por um narrador imaginário que trata-se, na verdade, de um dos companheiros de Soledad, sobrevivente que escapou, por sorte, da chacina (aquela que ficou conhecida como a chacina da chácara São Bento) e, 37 anos depois, pelas mãos de Urariano, recria os fatos, a partir de suas lembranças. Dialogando com o leitor e promovendo reflexões, nosso contador de estórias cria essa impressão, fazendo com que, muitas vezes, sua voz se confunda com a do próprio autor.

Sem dúvida, é um romance para ler, deleitar-se e, depois disso, refletir. Refletir sobre a frieza de Anselmo em delatar os companheiros, entregá-los à morte e falar sobre isso, anos mais tarde, sem a menor demonstração de culpa ou arrependimento; refletir sobre nossa história; sobre sentimentos que estiveram (e ainda estão) fortemente presentes; sobre as perdas humanas (muitas, até hoje, anônimas e sem justiça) e, principalmente, sobre o momento atual que é o reflexo de tudo isso; é a consequência (não sei se já posso dizer o desfecho) de nossa história (esta com H, porque real e verdadeira). Mas, acima de tudo, devemos refletir sobre a idéia de que trabalhos como este, de Urariano, não são produzidos todos os dias, infelizmente. Não recebem seu devido valor pelas mídias nacionais, mas são poderosos instrumentos de conhecimento e sabedoria, além, é claro, de fonte de orgulho e prazer para nós, leitores, que sabemos da importância de se ter uma boa estória nas mãos de um bom autor.

Passei semanas escrevendo este texto e deixei para ler outros artigos sobre Soledad no Recife após a conclusão do meu. Queria discorrer sobre tudo o que senti sem ser influenciada pelas demais opiniões. Mas percebi e fiquei feliz em ver que as opiniões são as mesmas, mudando apenas os ângulos de visão. Todos os que leram o livro e escreveram a respeito, enxergam Sol como a mártir de Urariano, como aquela que representa todas as vidas perdidas durante o período militar e, muitas, até hoje, esquecidas. Todos tiveram impressões parecidas e sentimentos aflorados (ódio, revolta, compaixão, ternura) com a grandeza realista e a coexistente sensibilidade do texto. Tenho certeza de que todos sentiram a mesma angústia e aperto no peito ao lerem o último capítulo, quando o narrador descreve a crueldade da execução dos jovens companheiros e de Soledad e denuncia a falsidade ideológica da imprensa (instituição controlada pelo poder vigente) nas manchetes dos jornais da época sobre o terrível genocídio – ao relatar que a polícia havia salvo o país de perigosos terroristas quando, na verdade, não passavam de jovens socialistas querendo se libertar das barbaridades militares. Sem dúvida, Soledad no Recife entrou para o grupo das melhores obras que já li e das quais mais indiquei a pessoas queridas e interessadas em boa Literatura. O texto é perfeito e isto é da mais real e absoluta sinceridade. Fez surtir um forte efeito em meu coração, o que me impulsionou ainda mais a escrever.

No mais, resta agradecer a Urariano pela produção de um cauteloso, sensível e maravilhoso trabalho, que nos promove a oportunidade de conhecer, documentar um importante período de nossa história e refleti-lo. Assim, divulgá-lo, incansavelmente, é o mínimo que podemos fazer para contribuir com o resgate da memória nacional e, claro, com o respeito aos que lutaram, avidamente, pela democracia. Acreditem: ainda que este não seja o país mais justo para se viver, ainda que não tenhamos mais o espírito guerreiro de lutar por mudanças, ainda assim, seremos pessoas bem melhores se formos capazes de olhar para a capa do romance de Urariano e irmos muito além da indignação pela realidade dos fatos, ao sentir a esperança de paz que nos é transmitida pelo brilho do sorriso largo de Soledad.

*Márcia de Oliveira. Professora, graduada em Letras, e moderadora do blog Letras & Arte (http://letrasearte.blogspot.com).

"Canto de Temporal", poema de Raymundo Netto


Canto de Temporal

Raymundo Netto

Em estado de algofilia...

Só tem explicações para tudo

Aquele que não vive nada!

Emoção confusa,

Mente obtusa

Em campos de concentração.

A imagem candente serpeia imprudente

No seu instante ocular.

Combalida, sofrida, esquecida

E inconstante em seu arfar,

A visão impudente

De sua vida celulada

Compõe a terra azul,

Fogosa em seu abrigo,

Ao cigarro amigo,

Ao vinho de caju.

Desaparece a sua fragrância no espaço...

Seus ensaios, em circunlóquio,

Reportam-se em beijos no mar.

Mundo desnaturado, morto de vidas, desencantado.

Caíra no chão pela última vez a voz

O coração sangrando sucumbe a só

A ilusão do pulsar que irradia.

Caíra no chão e pela ultimenésima vez a voz vocifera

Calara a quimera, mal que impera na dor que ardia.

Lançamento antologia da AJEB: "Policromias" (7.12)


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Lançamento "Minha Terra" e "Retratos e Lembranças", de Antônio Sales, e de "O Livro dos Enforcados", de Gustavo Barroso (30.11)

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Lançamento "Coroa de Rosas e de Espinhos", de Mário da Silveira (29.11)

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“A Maioridade de Maria no Centenário de Rachel”, curso GRATUITO no CCBNB Fortaleza (3.12)


Curso de Apreciação de Arte Centro Cultural Banco do Nordeste Fortaleza


“A Maioridade de Maria no Centenário de Rachel”


De 30 de novembro a 3 de dezembro de 2010, das 14 às 17h

Facilitadora: Profa. Paula Izabela,

graduada e especialista em Literatura Brasileira pela URCA,

escritora e produtora cultural no Cariri.


Inscrições GRATUITAS


Endereço e Informações:
Rua Floriano Peixoto, 941
Centro - Fortaleza/CE
CEP 60.025-130
Fone: (85) 3464.3108

"Morre Moacir C. Lopes", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO (24.11)

Pedro Salgueiro e Moacir C. Lopes na IX Bienal Internacional do Livro do Ceará,

última grande homenagem do Ceará a Moacir

(foto: Chico Gadelha)


Engano, apenas força de expressão. Na verdade apenas (apenas?) faleceu um dos maiores escritores que este sovina Estado produziu. Não morrerá quem deixou uma obra tão grande (em quantidade e qualidade) como Moacir Costa Lopes, que nasceu em Quixadá em 1927, teve uma infância penosa e aventuresca, uma juventude sofrida e viveu grande parte de sua vida no Rio de Janeiro.


Tive o prazer de encontrar com ele em duas ocasiões, no ruge-ruge de uma bienal de livros aqui em Fortaleza, mas antes já havia trocado com ele alguns e-mails referentes a uma entrevista que concederia pra a nossa revista Para Mamíferos*. Desde o início se mostrou uma figura maravilhosa, solícita, humilde e disponível. Foi-me apresentado pela amiga Susana Frutuoso, que estuda a obra dele.


Não sabíamos que ele já se encontrava doente. Quando convidado à bienal pelo amigo Raymundo Netto, nada exigiu de extra, apenas sugeriu que com ele viesse um acompanhante, o editor e amigo Gláucio Cunha Pereira.


Proferiu palestra sobre seu fazer literário, sempre com muita simpatia e disposição. Depois participou, como ouvinte, de uma mesa que lançaria a revista com sua bela entrevista. Conversou com todos, distribuiu autógrafos e sorrisos. Prometeu entrar em contato quando viesse fazer uma visita ao seu querido Quixadá.


Do escritor, todos o sabíamos grande, mas o que mais me impressionou nele foi sua simplicidade, seu jeito manso e humilde de conversar com todos. O que mais me deixou feliz em conhecê-lo foi saber que pode, sim, um grande artista ser ao mesmo tempo um grande homem. Mesmo que muitos tentem, com suas tristes vidas, demonstrar que não.


Nos deixou um legado de mais de 20 livros, dentre eles o famoso A Ostra e o Vento (filmado por Walter Lima Jr.), o meu predileto O Passageiro da Nau Catarineta, seus contos reunidos em O Navio Morto e outras tentações do mar, e um delicioso Guia Prático de Criação Literária, que guardo de lembrança com seu autógrafo carinhoso.


Cabe a nós, conterrâneos que ele tanto amava, lembrarmos sempre de suas obras e de seu jeito manso.


Obrigado, mestre, pelos seus belos frutos!


(*) A revista Para Mamíferos nº 2 com a entrevista, biografia ilustrada e encarte especial de Moacir C. Lopes encontra-se disponível para a venda em livrarias de Fortaleza



Pedro Salgueiro escreve contos e crônicas. Publicou O Peso do Morto, O Espantalho, Brincar com Armas, Dos Valores do Inimigo, Inimigos e Fortaleza Voadora. Organiza uma coletânea de contos fantásticos cearenses e edita, em parceria, as revistas Para Mamíferos e Caos Portátil: um almanaque de contos.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Lançamento "Serenata", inédito de poesias de Rachel de Queiroz (18.11)


- Serenata -


Armazém da Cultura lança livro inédito de poemas de Rachel de Queiroz


No ano do centenário do nascimento de Rachel de Queiroz (1910-2003), a editora Armazém da Cultura lança livro inédito de poesias da autora, intitulado Serenata. Os poemas (1925-1930) foram publicados em jornais e revistas cearenses da época e entregues à editora pelo bibliófilo José Augusto Bezerra, que mantém o Memorial Rachel de Queiroz, com o consentimento da família de Rachel.


Serenata contém poesias líricas de alguém que está descobrindo o mundo e sente a necessidade de expressá-lo em palavras. Rachel estabelece neste livro a sua identidade pessoal, a sua ideologia literária. Os temas poéticos abordados pela autora são sua própria vida, aquilo que a sensibilizava ou inquietava. A música, o livro, a casa, as pessoas, os sentimentos, os sonhos, a seca, o povo simples, a hospitalidade cearense, a religiosidade, são alguns destes temas apresentados na obra.


Organizado e apresentado pela escritora Ana Miranda, o livro de poemas Serenata demonstra claramente quem Rachel desejava ser, e quem seria por toda a vida, uma das maiores escritoras brasileiras, segundo Ana.


O lançamento do livro será no dia 18 de novembro, às 19 horas, no Espaço Armazém da Cultura. Na ocasião haverá um sarau literário, declamação de poesias, com a presença da irmã da autora, Maria Luiza de Queiroz.


Serviço:

Lançamento do livro Serenata, de Rachel de Queiroz

Data: 18 de novembro, às 19hs

Local: Armazém da Cultura

Rua Jorge da Rocha, 154, Aldeota

Mais informações: (85) 32249780

Editora: Armazém da Cultura

Preço de capa: R$ 35,00

Fone: (85) 3224.9780/8805.4401

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

"Sertão de Todos Nós", crônica Poema de Pedro Salgueiro para O POVO


"Sertão", de Nelson Cruz



http://www.opovo.com.br/app/colunas/pedrosalgueiro/2010/11/10/noticiaspedrosalgueiro,2062184/sertao-de-todos-nos.shtml


Fui, sou e serei, para sempre, apenas um sertanejo exilado no litoral. Nada aqui me diz respeito, por aqui tudo é transitório, passageiro... Apenas espero a triste hora do alegre regresso.

Aos trinta, por puro esnobismo, comprei gaiola na última linha do oceano. Cuidadosamente de costas pro mar, pra que toda manhã pudesse desdenhar meu asco de pequeno-burguês físico, mas nunca mental. De lá pra cá andejo em linha reta rumo aos Inhamuns.

Aos quarenta atravessei a fronteira imaginária da 13 de Maio, linha simbólica de todas as Fortalezas. Em sentido contrário aos tolos, tontos suburbanos mentais.

Meu voo é de avoante ferida, com tiro de chumbo nas c’roas do rio Acaraú, nas quebradas do Riacho do Gado, por trás da Barra da Oiticica, de lado da Caconha de todos os loucos.

Pois em cada quarto de qualquer família pulula um doidinho de testa quadrada, encarnado de sangue da abelha Capuchu... Enquanto o Diabo, rosianamente, redemoinha no terreiro.

Gracianamente seco, corre meu sangue pelas veredas pedreguentas do Carão. Do outro braço, o direito, o sangue das tristes Oliveiras, dos tontos bons da Curimatã, do Jumentão da Maravilha.

Apenas quando se estende pelas estradas do Canindé, as palavras vão escasseando, até quase sumirem da voz. Água evaporando na língua morna de todos os nós. De marejado apenas os olhos, único órgão úmido do sertanejo que volta.

Sou filho, pelos dois lados, da primeira geração que saiu do campo, que desbravou a cidadezinha no pé da Serra das Matas. Não sou filho de matuto urbano, mas de matuto dos matos, de pés rachados na urina do lajedo quente.

Meu pássaro é o Camiranga de beira de caminho, comedor de Cassaco e Tejubina de grota.

Meu ouvido é de rabeca triste cantada por cego em final de feira.

Minha casinha é branca, de parede grossa, quase na sombra de uma Jurema imaginária.

Mesmo longe de nosso chão, formamos confrarias de quase surdos-mudos.

Apenas olhamos para o nascente a perscrutar chuva.

E quando ela vier, é certo que vem, virá sempre, um dia.

Já nos encontrará de mãos trêmulas e mala pronta.


Pedro Salgueiro é cearense de Tamboril. Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), todos de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas

domingo, 7 de novembro de 2010

"Ateísmos", artigo de Manuel Soares Bulcão Neto para o Diário

Roma pagã. No Coliseu, milhares de cidadãos, com expressões malignas, amontoam-se em suas arquibancadas. Embaixo, na arena, homens, mulheres e crianças são destroçados por garras e mandíbulas felídeas. Enquanto dura o espetáculo de sangue e horror, a plateia, em êxtase, grita: "Morte aos ateus!".


Sim, como bem lembrou a teóloga Karen Armstrong (Uma história de Deus, Companhia das Letras, 1994, p. 107), os cristãos, na Roma antiga, eram considerados ateus por desacreditarem na existência das divindades do Império, tidas como ídolos ou falsos deuses; por não reverenciarem o César como dominus ac deus; e também porque, para os romanos, um deus único "em estado gasoso" era-lhes contraintuitivo, destoante do bom senso da época.


De fato, a palavra "deus" é problemática do ponto de vista semântico, talvez polissêmica, uma vez que serve para designar entidades díspares: uma paleolítica minhoca-totem; o elefante cor-de-rosa (Ganecha) do hinduísmo; as quimeras egípcias; os césares (Tibério, Calígula, Nero entre outros tiranos sádicos); os parentes mortos dos árias; o ancião IHWH - que ceava na mesa de Abraão e se autoproclamava "o deus dos deuses" (Deuteronômio, 10; 17) ; o primeiro motor de Aristóteles; a natura naturans (geratriz da natureza) de Spinoza; a mão de Maradona…


Atualmente, mesmo em Estados laicos, não é incomum manifestações antiateístas raivosas, inclusive respaldadas por setores da mídia, como a que ocorreu em nosso País, há pouco tempo, sob a batuta de um apresentador de noticiário policial. Nesses pogroms, em discursos prenhes de ódio totalitário contra o Diferente, os ateus em geral são demonizados, apontados como criminosos reais ou potenciais, acusados de imorais em princípio e de niilistas incorrigíveis.


Diga-se que, no Ocidente, e para esses religiosos supostamente "do Bem", os ateus vilipendiados não são os que descrêm dos deuses pagãos (estes há muito foram renegados pelo monoteísmo abraâmico como ídolos inanimados ou demônios), mas do Único judaico-cristão: aquele cujo passado negro — incomensuravelmente mais preto que o da presidente Dilma — jaz registrado no Velho Testamento; e que, como dizem, escreve certo com linhas tortas e caligrafia tão ruim que não é possível decifrá-la (vendo templos desmoronando sobre fieis, fica difícil distinguir o misterioso solilóquio de Iavé daquilo que Shakespeare, em Macbeth, chamou de "parolagem furiosa e sem sentido de um idiota").


A propósito, o ateísmo que surgiu na esteira do iluminismo (o de Marquês de Sade é exceção) não tinha por objeto a libertação das "amarras" morais e entrega ao "vale tudo" vaticinado por Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski. Ao contrário, foi o fato de a religião ter se revelado um instrumento de dominação e exploração pelo terror — suas divindades cruéis tornavam a existência mais medonha do que era na realidade - que muitos homens "justos e bons" converteram-se ao ateísmo.


Para os ateus modernos, a moral não carece de justificação sobrenatural. Crêem eles — sim, tal ateísmo, embora racionalista, também é uma crença — que suas raízes estão fincadas no coração do homem; vale dizer: é da nossa pulsão gregária, empatia pelo semelhante, curiosidade pelo estranho (atração pelo estrangeiro, pelo outro) e desejo de autonomia que os grandes valores se alimentam. De resto, lembro que as qualidades mundanas acima citadas são comuns a teístas, ateus, agnósticos (entre os quais me incluo), petistas e tucanos. Que se sobreponha, então, esta unidade, e não a unicidade.

"Chico da Silva, o Dragão da Mata", crônica de Ana Miranda para O POVO

"Dragão", de Chico da Silva (1974)

Sempre fui fascinada pelas pinturas de Chico da Silva. São dramáticas as formas dos animais, inesperadas suas projeções no espaço, e belíssimos os obsessivos e quase irracionais ornamentos. Essas pinturas me fazem sonhar e me tocam a sensibilidade, o seu profundo mistério me magnetiza. De onde vêm esses seres?


Só quando me mudei para o Ceará fiquei conhecendo melhor esse artista, pois jamais encontrara um livro sobre sua obra. Mas, um dia, revirando um acervo de livros usados, lá estava Chico da Silva, do delírio ao dilúvio, de Roberto Galvão, uma edição rudimentar, mas com um texto esclarecedor sobre o percurso desse grande artista. É uma biografia sofrida e milagrosa. Ele nasceu no Acre, no meio da floresta amazônica, região do Alto Tejo. O Acre é quase uma extensão do Ceará, devido às intensas migrações de trabalhadores cearenses para a extração da borracha. A mãe de Chico da Silva era cearense, e casou-se com um caboclo peruano, talvez descendente dos índios kampa. Ali é quase fronteira com o Peru. Chico veio menino para o Ceará, indo morar em Quixadá, depois em Guaramiranga. Talvez esteja nessa infância a origem de seus seres imaginários e de sua delicadeza estética. Ele declarou que fora educado por índios e por missionários. Essa convivência com uma floresta amazônica repleta de animais deslumbrantes, cores variadas, detalhes infinitos, o dia a dia com os índios e suas artes plumárias e pinturas corporais, seus artesanatos entrançados e minuciosos, com a religiosidade e superstição dos povos silvestres, as lendas e mitos; depois a convivência com as áridas paisagens de caatinga, repletas de cactos, espinhos, formas sinuosas, e superstições; em seguida a experiência de Guaramiranga, com suas matas quase tropicais e ciliares, as orquídeas e bromélias de formas fantásticas e tão sugestivas; essa combinação de experiências visuais e sensoriais com a sua sensibilidade formal e extremada imaginação, a contemplação de paisagens de uma pureza atemporal, e mais os sentimentos angustiosos de orfandade e pobreza, criaram seus dragões.


Já morando na bucólica aldeia de Pirambu, entre mares e morros de areia, o rapazinho talvez se sentisse solitário, desamparado. Morto o seu pai, ele trabalhava consertando sapatos, fogões, sombrinhas, ou fabricando fogareiros de lata. Não sabia ler nem escrever. Como um gesto desesperado de comunicação, passou a rabiscar nas humildes paredes de taipa das casas dos pescadores, usando simplesmente carvão ou pedaços de tijolo, fragmentos de barro, frutas, delineando em murais os seus seres imaginários. Os moradores chamavam-no de “o indiozinho débil mental”, palavras que demonstram certo carinho, mas uma grande incompreensão por sua “escrita”.


Um dia passou por ali um artista suíço, Jean Pierre Chabloz, e percebeu o extraordinário talento contido naqueles grafites rústicos. Deu a Chico da Silva um maço de cartolinas, tinta nanquim, guaches, pastéis, lápis, penas e pincéis. Semanas depois, Chico apresentou-lhe os primeiros trabalhos. Assim começou a florescer a sua arte “saturada de inesquecíveis visões amazônicas”, mas também cearenses, pois vejo em sua obra laços profundos com os pontilhados coloridos de mestre Noza, com os ornamentos sinuosos das vestes dos vaqueiros, ou com os trabalhos das rendeiras.


Chabloz comprava as pinturas e guiava-o sempre em direção aos sonhos. Quando Chico já produzira um bom número de obras, Chabloz escreveu uma resenha que foi publicada na revista francesa de maior prestígio na época, Cahiers d’Art. Chico da Silva era, então, um dos maiores artistas ingênuos do mundo, com obras em coleções sofisticadas. Na Bienal de Veneza recebeu uma menção honrosa, inédita para a arte brasileira. Seus quadros eram desejados e disputados. Criou uma oficina em Pirambu, onde discípulos desenhavam sob seu estilo, e ele assinava as obras. Faz-me lembrar o artista brasiliense, Athos Bulcão, que criava azulejos como módulos e pedia aos operários que os cimentassem livremente nos painéis, imprimindo uma ingenuidade estética. Chico não tinha a visão enciumada de autoria, e não era mais apenas um artista, mas um estilo, como Vitalino. O próprio Chabloz percebeu a natureza ampla dessa obra e destacou sua vocação para a arte aplicada, como tapeçarias, bordados, cerâmica, vidros, panos, com as figuras de Chico. Incrível que ainda não exista!


Pensando, aqui com meus botões, na revitalização da orla de Fortaleza, imaginei um museu na praia Formosa, em Pirambu, dedicado à obra desse grande artista.



ANA MIRANDA é autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras.



sexta-feira, 5 de novembro de 2010

"SopÓpera: crônica poemarcelo bittencourt", de Raymundo Netto para O POVO (6.11)


SopÓpera:

Crônica Poemarcelo Bittencourt

Raymundo Netto especial para O POVO

http://digital.opovo.com.br/reader2/


Nasce o poeta à luz de um dia, extraído de gomos de nuvens, forjado em flandres, coração cerzido por cantos de anjos. Vem ao mundo na cangalha de vento, ao caminhar lento de quem nada espera do desperdício das horas que se arrastam pela vida afora num sopro fresco a tremular a cortina fina da janela, a revelar a parede caiada, branca fumaça, tal qual folha sem graça de papel sem rastros de versos.

Ainda menino, sente-lhe cair ao colo a étima poesia. Descontem-se os sentimentos que afloram e afaunam a sua apatia. Como fora luz a mostrar palmo de língua a si mesma, insaita: a poesia não está na palavra, pois que esta é larva; a poesia é não mais que sim, é você antes de mim, é mais antipoesia que poesia e se respira no quintal, na grama verde, no sorriso da criança que comove e se rende à esperança, e, finalmente, a poesia não é a cara do poeta, mas do mundo, e o mundo uma sombra que vaga no fundo de seu olhar.

O néscio, cuja fronte suada é cingida pelos louros do ideal, opta pela vereda anárquica original, musa da loucura melódica a flutuar na monocórdica mansidão do mundo ao som profundo dos estertores de seu peito magro e punho. Mal sabe ter elegido, como destino de vida, um reles rascunho.

Ordena-se, então, com pompas de herói marginal, por meio do sonho o poeta sem igual e, desdentão, pôe-se a dançar com os demônios, a rir-se e a se rir, à socapa, com eles, a vender-lhes por nada a alma, a deitar em sua lama, em sua cama, a coçar-lhes as feridas às costas, a provar-lhes o fel da amargura e dissabor, a transformar todo o infortúnio desta orbe em amor.

Carrega assim, vida sem fim, na aflição da alma lunar, todas as madrugadas, por travesseiros as calçadas e a própria febre como cobertor. Colhe no ar cada palavra e a semeia com a dura doçura de esteta e palavrador, aquarelas palavras que espinham-lhe a garganta, que cortam-lhe os dedos e que alfinetam o pensamento ensimesmado. O fio de ideias que escapam-lhe o novelo, a embaraçar os cabelos, a enrugar-lhe a testa que, em festa, comemora seu verso engrolado.

O poeta não o sabe — há quem lhes diga —, mas carrega entranhado em si a dor de todos e a ela suporta com olhos lacrimosos no decotar do peito arfante da mulher da rua, no meio-fio frio nas noites de luar, na urina que escapa-lhe ainda quente à parede do bar, na volúpia da anca pública, na morte anunciada em seu olhar. E descreve sua poesia com letras da fome, sabendo que as fomes maiores vêm da agonia dos que nada tem, pois que se-lhes é arrancado todos os dias pelos insaciáveis tubarões do Congresso que as mantêm.

Dói... Ah, como lhe dói a marcha vida. A ele, e somente a ele, o mundo impõe o exílio, e este, sem auxílio, pode estar aqui, em meio de todos, no escárnio, no deboche de quem lhe diz: Doido! Maluco! Abestado!

O poeta, sim, sem enfado, sabe, mas não acredita que sabe tudo, pois tudo às suas vistas é imensidão, é indecifrável, é beleza. Ao contrário dos homens doutos que em sua vileza dizem saber tudo, pois conseguem ir e vir da esquina; e tem dinheiro para comprar a esquina, ou aquela que encosta-se a seu poste ou na feira, mas que não vê que nunca a possuirá inteira...

O poeta deitado em seu quarto, coxas à barriga, morre todos os dias e sonha para esquecer a vida. Veem-no e o dizem preguiçoso, dorminhoco, um pastor com sobrosso de um louco, em querelas de mesa de bar: “Poetas, vagabundos a vaguear!”

Cinzas ilusões, cinzéis de emoções, antes da garganta sufocar e seu corpo, em balanço, pendular, molha para trás os cabelos. A barba negligente, pela última vez, coça. Lê mais um verso do “maldito” e adoça o último orvalhar de sua face

Ao poeta desconhecido, a sepultura forrada com borboletas, a sarjeta pessoal, a mesa posta em mistérios de um universo estrelado de lantejoulas, entre folhas de papel crepom luzidias e amargas balas de celofane. Quando suas palavras quedam entre as fagulhas do seu poema, diluem-se, estalam-se e viram vidro, caneta, papel e incompreensão. Da taça que bebes, ó poeta, entornas do seu verso, em semente, a solidão.

Raymundo Netto num minuto de silêncio poético. Contato: raymundo.netto@uol.com.br blogue AlmanaCULTURA: http://raymundo-netto.blogspot.com