sábado, 27 de novembro de 2010

"Soledad no Recife", de Urariano Mota, por Márcia de Oliveira


Urariano Mota:

A Cautelosa Recriação dos Duros Tempos e o Sorriso Esperançoso de Soledad

...Porque “tudo quanto se destina

a surtir efeito nos corações,

do coração dever sair”. (Goethe)

Ao ler Soledad no Recife, romance de Urariano Mota, nos deparamos com uma difícil situação, ao descobrir que palavras são pobres e insuficientes para traduzir a grandeza do texto, a perfeita recriação de uma triste e cruel estória e, principalmente, o brilho do sorriso cheio de esperança de Soledad Barrett Viedma (a Sol), uma jovem militante paraguaia, assassinada junto com seus companheiros durante os duros tempos do regime militar pós-64, depois de ser covardemente entregue por seu companheiro Daniel (cabo Anselmo), namorado e pai do filho que esperava.

O romance, histórico, mas com ares de biografia, que traz como pano de fundo a ditadura militar brasileira, mais precisamente os duros tempos do governo Médici, quando militares, descrentes do sistema democrático, defendiam que um regime de força, cerceador das liberdades políticas e constitucionais fosse a “melhor” coisa para o Brasil, atrela-se aos mais completos e surpreendentes recursos estilísticos que resultam numa mistura perfeita de ficção e realidade.

Através do que chamo de uma grande sacada, a de acrescentar um narrador-personagem fictício, de estilo mavioso e apaixonado, que nutre um amor platônico por Soledad, Urariano recria, minuciosamente, um contexto histórico real, acompanhado de uma ficção demasiado impressionante onde, em muitos momentos, me senti pertencente ao texto, como se vivesse àquela época. Impressionei-me com as fortes imagens do sofrimento de jovens idealistas que tiveram suas vidas interrompidas, precocemente, em nome do sonho de se construir um mundo melhor, chegando até mesmo a sentir suas angústias e a visualizar seus sonhos e medos.

O sentimento platônico despertado pela bela e revolucionária protagonista em nosso narrador é um detalhe que adoça um pouco a estória, porque consegue suavizá-la; torná-la menos dura e ainda mais especial. Como é possível alguém falar de amor, de forma tão terna e poética, em meio aos anos de chumbo? O escritor, jornalista e agora, com certeza, POETA Urariano consegue. Como conceitua muito bem Flávio Aguiar, no texto de apresentação do livro: Soledad no Recife é “um romance de amor que se passa em tempos contrários ao amor”. Em um tempo em que prevaleciam o medo, o silêncio e a falta de liberdade. Um tempo em que a condição humana não era respeitada. Um tempo em que o amor era visto como bobagem, alienação. E, mesmo assim, um tempo em que até o mais violento gesto, a mais cruel e sanguinária repressão não foi capaz de impedir que jovens, socialistas, erguessem suas bandeiras e lutassem, arriscando suas vidas, em nome da esperança de dias melhores e, não obstante, no calor da luta armada, sucumbissem aos desejos de amor. Parafraseando, oportunamente, as palavras de Urariano, devemos reconhecer que aqueles jovens, àquela época, eram verdadeiras “sensibilidades agudas e inteligências sufocadas”.

“Gostaria de ter junto a mim sempre a visão que dela tive nesse encontro. Um regalo para os olhos. Quem a viu somente ali, sempre a recordará como uma pessoa carinhosa, guapa e linda em mais de um sentido. Para os olhos, para a inteligência, para o espírito, para o coração”. (Soledad no Recife. Pág. 106)

Onde termina a ficção e começa a realidade? Me fiz esta pergunta várias vezes ao ler a estória contada por um narrador imaginário que trata-se, na verdade, de um dos companheiros de Soledad, sobrevivente que escapou, por sorte, da chacina (aquela que ficou conhecida como a chacina da chácara São Bento) e, 37 anos depois, pelas mãos de Urariano, recria os fatos, a partir de suas lembranças. Dialogando com o leitor e promovendo reflexões, nosso contador de estórias cria essa impressão, fazendo com que, muitas vezes, sua voz se confunda com a do próprio autor.

Sem dúvida, é um romance para ler, deleitar-se e, depois disso, refletir. Refletir sobre a frieza de Anselmo em delatar os companheiros, entregá-los à morte e falar sobre isso, anos mais tarde, sem a menor demonstração de culpa ou arrependimento; refletir sobre nossa história; sobre sentimentos que estiveram (e ainda estão) fortemente presentes; sobre as perdas humanas (muitas, até hoje, anônimas e sem justiça) e, principalmente, sobre o momento atual que é o reflexo de tudo isso; é a consequência (não sei se já posso dizer o desfecho) de nossa história (esta com H, porque real e verdadeira). Mas, acima de tudo, devemos refletir sobre a idéia de que trabalhos como este, de Urariano, não são produzidos todos os dias, infelizmente. Não recebem seu devido valor pelas mídias nacionais, mas são poderosos instrumentos de conhecimento e sabedoria, além, é claro, de fonte de orgulho e prazer para nós, leitores, que sabemos da importância de se ter uma boa estória nas mãos de um bom autor.

Passei semanas escrevendo este texto e deixei para ler outros artigos sobre Soledad no Recife após a conclusão do meu. Queria discorrer sobre tudo o que senti sem ser influenciada pelas demais opiniões. Mas percebi e fiquei feliz em ver que as opiniões são as mesmas, mudando apenas os ângulos de visão. Todos os que leram o livro e escreveram a respeito, enxergam Sol como a mártir de Urariano, como aquela que representa todas as vidas perdidas durante o período militar e, muitas, até hoje, esquecidas. Todos tiveram impressões parecidas e sentimentos aflorados (ódio, revolta, compaixão, ternura) com a grandeza realista e a coexistente sensibilidade do texto. Tenho certeza de que todos sentiram a mesma angústia e aperto no peito ao lerem o último capítulo, quando o narrador descreve a crueldade da execução dos jovens companheiros e de Soledad e denuncia a falsidade ideológica da imprensa (instituição controlada pelo poder vigente) nas manchetes dos jornais da época sobre o terrível genocídio – ao relatar que a polícia havia salvo o país de perigosos terroristas quando, na verdade, não passavam de jovens socialistas querendo se libertar das barbaridades militares. Sem dúvida, Soledad no Recife entrou para o grupo das melhores obras que já li e das quais mais indiquei a pessoas queridas e interessadas em boa Literatura. O texto é perfeito e isto é da mais real e absoluta sinceridade. Fez surtir um forte efeito em meu coração, o que me impulsionou ainda mais a escrever.

No mais, resta agradecer a Urariano pela produção de um cauteloso, sensível e maravilhoso trabalho, que nos promove a oportunidade de conhecer, documentar um importante período de nossa história e refleti-lo. Assim, divulgá-lo, incansavelmente, é o mínimo que podemos fazer para contribuir com o resgate da memória nacional e, claro, com o respeito aos que lutaram, avidamente, pela democracia. Acreditem: ainda que este não seja o país mais justo para se viver, ainda que não tenhamos mais o espírito guerreiro de lutar por mudanças, ainda assim, seremos pessoas bem melhores se formos capazes de olhar para a capa do romance de Urariano e irmos muito além da indignação pela realidade dos fatos, ao sentir a esperança de paz que nos é transmitida pelo brilho do sorriso largo de Soledad.

*Márcia de Oliveira. Professora, graduada em Letras, e moderadora do blog Letras & Arte (http://letrasearte.blogspot.com).

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