segunda-feira, 3 de maio de 2010

"Livros em Fortaleza", crônica de Ana Miranda para O POVO


Uma pessoa querida, descendente de italianos, me disse que gostaria de levar suas crianças para conhecerem a terra de origem, mas não via condições para uma viagem tão dispendiosa. Quando fui em visita, levei de presente um livro de imagens e textos sobre Roma, com lindas fotos de paisagens, das estreitas ruas da cidade, suas igrejas antigas, praças, museus com suas pinturas e estátuas, jardins, palácios, pessoas... Virando aquelas páginas, as crianças conheceram a cidade, em fantasias acesas.

Dizem que o viajante sábio viaja mesmo é na imaginação. E os livros são guias para essas viagens, podem nos levar a todos os lugares, todos os tempos. São nossas asas invisíveis, e sem o peso das nossas malas nos deslocamos, livres e curiosos, também invisíveis penetramos as infinitas geografias do mundo.

Mas não é apenas essa viagem sem bilhete a magia dos livros. Podemos, através deles, vagar por dentro de outra pessoa, experimentar o que é ser o outro, e até nos tornarmos o outro, naquele momento. Uma das relações mais íntimas é a que acontece entre leitor e autor, que nem se conhecem pessoalmente, quase sempre. Se lemos Dante, ou Borges, ou Rachel, ou quem quer que seja, nossa mente aprende a trabalhar do mesmo modo como trabalha a mente do autor daquelas palavras. Nos instantes em que percorremos as linhas, nossa mente deixa de pensar como de seu costume e adota um novo pensamento, aprendendo outro modo de ser, e se expande, e nos dá mais instrumentos para vivermos.

Depois da leitura de um livro, não somos mais a mesma pessoa, somados a essa experiência que talvez tenha até mais força que a vida real. O livro que mais me transformou, e não na primeira leitura, foi o Grande Sertão & Veredas, de Guimarães Rosa, que é uma extrema experiência de linguagem; daí deduzi que a transformação se dá pela conquista de uma nova linguagem que liberta a mente e nos faz construir a própria voz.

Mas a leitura de um livro, seja ele ficcional ou não, é feita em camadas e camadas de pensamentos, sentimentos, sensações. Ao mesmo tempo em que lemos a trama, lemos a linguagem e a língua, o tempo e o espaço, a postura do autor e a nossa, a ética e paixão contidas no texto, a política; fazemos a crítica, a comparação, julgamos o outro, compreendendo melhor nosso próprio comportamento, mergulhamos em nossa memória, em lembranças de outros, dos outros, e nas minúcias da vida; absorvemos conhecimentos, e palavras, e modos de expressão e mais e mais e mais... Sentimo-nos acompanhados, solitários, inquietos, alentados, tristes ou felizes, marejam os olhos, percorrem-nos arrepios, encantos, assombros, deleites, na leitura do livro tudo pode acontecer, mesmo não acontecendo, como nos sonhos. E não importa o tempo.

Uma leitora certa ocasião me escreveu protestando contra a morte de uma personagem, e respondi-lhe que recomeçasse a leitura, encontraria a personagem novamente viva. Vencemos o tempo, vivemos a eternidade. Tudo isso se faz com uns poucos rabiscos que até crianças pequenas aprendem a vislumbrar.

Tantas vezes me ouvi pensando nas palavras de Gênesis: o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Em meu singelo filosofar, penso que isso significa ser o nosso espírito elevado por meio da palavra. Hoje acordei filósofa e apaixonada pelos meus livros. Já disse que eles são um mapa de minha cabeça, como se minha mente fosse forrada de estantes e estantes com livros arrumados dentro de uma lógica essencial. Sei onde está cada um, ouço quando um deles me chama, vou até ali e o retiro da prateleira, abro, e leio o que ele queria me dizer. Cada um deles é uma porta para uma espécie de labirinto infinito. O conjunto deles toma a cada dia um significado mais nítido, como se eles estivessem se transformando em mim e não apenas eu, neles.

Uns passam dias à minha cabeceira, eu releio às vezes algumas páginas, às vezes todas, faço anotações às margens, sonho com algo relacionado a seu mundo, até que desejam voltar à estante. Sinto como se eles fossem seres vivos, que choram, sorriem, amam, ensinam, respiram... e assim vivemos juntos, eu numa espécie de prisão escolhida, conformada, e até mesmo feliz. Andei estes dias arrumando a minha biblioteca, como se arrumasse minha própria cabeça. Retirei uns, mudei de lugar outros, folheei as páginas, recordando, separei uns para reler, abracei-os, talvez animada pela grande festa do livro que é a Bienal. Lá estão eles num lugar de alegria, depois de um esforço imenso de nossa cidade, esperando por nós.

Crônica publicada em O POVO, Vida & Arte, em 16.04.2010

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