Dizem que o viajante sábio viaja mesmo é na imaginação. E os livros são guias para essas viagens, podem nos levar a todos os lugares, todos os tempos. São nossas asas invisíveis, e sem o peso das nossas malas nos deslocamos, livres e curiosos, também invisíveis penetramos as infinitas geografias do mundo.
Mas não é apenas essa viagem sem bilhete a magia dos livros. Podemos, através deles, vagar por dentro de outra pessoa, experimentar o que é ser o outro, e até nos tornarmos o outro, naquele momento. Uma das relações mais íntimas é a que acontece entre leitor e autor, que nem se conhecem pessoalmente, quase sempre. Se lemos Dante, ou Borges, ou Rachel, ou quem quer que seja, nossa mente aprende a trabalhar do mesmo modo como trabalha a mente do autor daquelas palavras. Nos instantes em que percorremos as linhas, nossa mente deixa de pensar como de seu costume e adota um novo pensamento, aprendendo outro modo de ser, e se expande, e nos dá mais instrumentos para vivermos.
Depois da leitura de um livro, não somos mais a mesma pessoa, somados a essa experiência que talvez tenha até mais força que a vida real. O livro que mais me transformou, e não na primeira leitura, foi o Grande Sertão & Veredas, de Guimarães Rosa, que é uma extrema experiência de linguagem; daí deduzi que a transformação se dá pela conquista de uma nova linguagem que liberta a mente e nos faz construir a própria voz.
Mas a leitura de um livro, seja ele ficcional ou não, é feita em camadas e camadas de pensamentos, sentimentos, sensações. Ao mesmo tempo em que lemos a trama, lemos a linguagem e a língua, o tempo e o espaço, a postura do autor e a nossa, a ética e paixão contidas no texto, a política; fazemos a crítica, a comparação, julgamos o outro, compreendendo melhor nosso próprio comportamento, mergulhamos em nossa memória, em lembranças de outros, dos outros, e nas minúcias da vida; absorvemos conhecimentos, e palavras, e modos de expressão e mais e mais e mais... Sentimo-nos acompanhados, solitários, inquietos, alentados, tristes ou felizes, marejam os olhos, percorrem-nos arrepios, encantos, assombros, deleites, na leitura do livro tudo pode acontecer, mesmo não acontecendo, como nos sonhos. E não importa o tempo.
Uma leitora certa ocasião me escreveu protestando contra a morte de uma personagem, e respondi-lhe que recomeçasse a leitura, encontraria a personagem novamente viva. Vencemos o tempo, vivemos a eternidade. Tudo isso se faz com uns poucos rabiscos que até crianças pequenas aprendem a vislumbrar.
Tantas vezes me ouvi pensando nas palavras de Gênesis: o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Em meu singelo filosofar, penso que isso significa ser o nosso espírito elevado por meio da palavra. Hoje acordei filósofa e apaixonada pelos meus livros. Já disse que eles são um mapa de minha cabeça, como se minha mente fosse forrada de estantes e estantes com livros arrumados dentro de uma lógica essencial. Sei onde está cada um, ouço quando um deles me chama, vou até ali e o retiro da prateleira, abro, e leio o que ele queria me dizer. Cada um deles é uma porta para uma espécie de labirinto infinito. O conjunto deles toma a cada dia um significado mais nítido, como se eles estivessem se transformando em mim e não apenas eu, neles.
Ana Miranda escreve o que eu sinto.
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