Andava por aqui, fazendo serviços de eletricidade, o senhor Xavier, e entre uma conversa e outra ele acabou me contando que era rabequeiro. Homem magro, de cabelos brancos, olhos fundos e descorados, meio quixotesco, mostrava uma disposição e leveza para a vida que pareciam vir da música, ou, quem sabe, o espírito musical tenha sido inspirado por uma natural alegria. É um milagre do isolamento sertanejo que ainda existam rabequeiros. Em Portugal, não há mais, e as rabecas vieram de lá, com os primeiros colonos nas caravelas, tangendo seus sofrimentos sobre as ondas do oceano. Mas, aqui, rabequeiros estão por todo lado, como um secreto tesouro da história de nossa música e de um passado sentimental. Vi, num maravilhoso livro de Gilmar de Carvalho, Rabecas do Ceará, um levantamento feito há poucos anos em nossos sertões, perto de cem desses instrumentistas, e cada um deles cita um bocado de outros. Lindas fotos, comoventes depoimentos. As falas de cada rabequista são transportadoras de um mundo de muita dignidade e rudeza, que respeita uma moral de origem, e a compostura, mostrando-se num palavreado meigo e ancestral: zuadinha, entonce, fui eu que instruciei um martelo agalopado de oito linhas... Chiquim pegue o violim pra eu descansar meus dedos! Chico Ferreira, feitor de violino, O bichim tem que ser toadista mesmo, Tá aqui a rabeca é sua, você tem cuidado, porque isso aqui ensina tudo, o que é bom e o que não presta.
As histórias da vida desses rabequistas se parecem, quase todos são lavradores, quase todos eram meninos quando começaram a tocar, quase todos aprenderam sozinhos, ao ouvirem outro rabequeiro e sentirem o chamado da vocação. Uma latinha de pólva, um braço de madeira... "Só porque eu vi os outros por ali e eu aprendi a afinar a rabeca e ela ali ensina a gente, né". Eles fazem o próprio instrumento. Conseguem com outro músico o molde, escolhem a madeira a seu gosto e critério, uns preferem raiz de juazeiro, outros, umburana de espinho, ou inharé, e compensado para o texto, pescoço de pau-d-arco, rabequinha de buriti, raiz de pau de timbaúba, cedro de lei talhado com uma faca velha, ou rabecas de folha de flandres, de bambu... Montam, colam, pregam, pintam, acabam, botam as quatro cordas, fazem o arco, estendem a crina, untam com breu. As histórias que eles contam da primeira rabeca são de cortar o coração, "O violino que recebi foi este. Que ele me prometeu, e depois da morte, o menino veio deixar". Ou o pai que descobriu o filho tocando escondido no mato e o surrou com chicote. Mas, um dia, depois de muita vontade e sonhos, apoiam o arrabil no peito e vão aprender o mais difícil, que é a afinação, em quintas, sol ré lá mi. Cada rabeca tem um jeito, um material, e um som. Todas são únicas. São difíceis de tocar, pois não há travejamento para marcar o lugar da nota. "As notas invisíveis quem faz é a cabeça da gente". Aprendem sem be-a-bá, "Com pouca hora tava encontrando o toque". Depois, vão conhecer quebra de tom. Saem a tocar o xote, a valsa, mazurca, o choro mole, baião, samba, as musgas do Gonzaga... "Na hora eu tocava um quinado, hum, eu fazia a rabeca falar". Uns compõem músicas, "Eu tiro uma música até duma música dum passarinho". Tocavam nas latadas, nos reisados, em casamentos ou leilões, nas brincadeiras, em Casimiro coco... Romances de apartação, lendas, versos satíricos... Eram muito requisitados, mas pagos na maior parte com uns goles de cana. "Naquele tempo, era promessa e o tocador tocava a noite inteira, até o sol nascer... Nove jornadas..." Um dia chegou a sanfona, a grande sanfona de Gonzaga, respeitáveis oito baixos, de som amplo e sem o plangente escorrido das cordas tensas. Muitos desses rabequeiros largaram o instrumento, não têm mais onde tocar, outros só tocam nos templos protestantes. ``Aí foi caindo, caindo, caindo, pronto. Ninguém quis mais." "Ninguém mais sabe nem se o tocador é bom."
Nunca tive a oportunidade de ouvir a rabeca de seu Xavier, mas escutei outros rabequistas, e adoro o som rude, quase arranhado, o toque rascante, sentido e tristonho, que carrega uma melancolia moura, assim como os sons medievais que faziam os dançarinos saltarem, ou os sentimentos das poesias seguidas pelos menestréis. Um som lunar, um violino ancestral e desobediente, que prefere as pancadas do braço, o ritmo, o som rasgado, e se reinventa na criação constante da sensibilidade sertaneja. As lágrimas dos descendentes do antigo rabab carregam o orgulho de uma sabedoria distinta.
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