domingo, 31 de janeiro de 2010

"A Maior Invenção do Mundo", crônica inédita de Raymundo Netto para LITERAPIA nº 13, da SOBRAMES


Omahr Prabahvanadaba, filósofo das bandas do oriente, passou tanto tempo de sua vida a transcender os limites da matéria, reflexo turvo que a natureza nos impõe, que certo dia, de tanto meditar, desmaterializou-se, fez-se todo pensamento sarapintado em pacotes de luz. Seus escritos, entretanto, deitados em papiros conservados pelo esquecimento em ânforas sob as estrelas — e areias — do Egito, sobreviveram ao seu desaparecimento e gritaram revelações perturbadoras aos maiores doutos da ciência.

Num desses famosos manuscritos, descortina a origem da Terra e da Humanidade. Nele, consta que a grande invenção sobrenatural do mundo caberia a um deus, uma entidade de uma engenhosidade e poderes fabulosos e incognoscíveis que, diante do nada absoluto e enfadante, riscou um palito de fósforo — incrivelmente anterior ao produzido, apenas em 1827, por Johnny Walker (não confundir com o Striding Man) — e pôs-se a criar este mundo. Digo “este”, pois acredita o Mestre Omahr que os demais orbes são apenas esboços malfadados da inexperiência do onipotente que, adiante, criou os elementais do fogo, da água e do ar, e deles advieram as bactérias, unidades sincréticas entre o vegetal e animal que, desprovidas de ego-vacuidades, fixaram-se nas dunas e no lodo e com seu enxerimento atávico logo os transformaram em simples cidades, colônias e florestas de samambaias carboníferas.

Até então, por não querer testemunha nem aplauso, a divindade não criara vida animal. Antes a música, que nada mais é do que matemática cantada. Construída a fantasia do idílio, empunhou terra vermelha e, certo de que dela poderia extrair uma obra de arte ou um penico, optou em moldar o ser humano.

Assim, tomando-se no espelho, o fez. Este ser era, pois, homem-mulher, como ele e os querubins. Logo, lançou vigorosamente a sua criação ao mar, partindo-a em duas metades e completando-as, como cream crackers, em água e sal, yin e yang, dia e noite, quente e frio, positivo e negativo: Adão e Loã.

Loã, mais bela e muito virgem, não aceitou a preferência dos paparicos de deus ao privilegiado e empossado capataz do novo mundo, o jovem Adão, muito bobo, sempre brincando de bilas e correndo atrás de ovelhinhas. Passou a desafiar o pai que, em sua infinita impaciência, condenou-a a pratear o céu entre os mundos em forma de lua, onde até hoje repousa a feiticeira branca, ainda cheia de fases provocativas.

Trocando uma ideia com deus, Adão que preferia a má companhia à solidão, e cansado de masturbar-se em noites de luar, negociou uma de suas costelas — sabia-as muitas e antevia possibilidades... — em troca de uma diva. Soubesse Anatomia, ofereceria o apêndice, cujo único objetivo é dar dinheiro aos cirurgiões.

Deus ex machina, penalizado com a criança, criou a moça Eva, menos bela, magra e falsa como a origem e mais submissa. O supremo, entretanto, condiciona: “Não poderão, de forma alguma, comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal!” Ora, todo bom pai sabe que a proibição só seduz... E assim, o casal viveria num paraíso, não fosse a presença da serpente que, ninguém sabe como, convenceu a curiosa mulher a comer tal fruto do pecado: a manga! Como Eva convenceu Adão a também chupar essa manga, aí já é fácil deduzir...

E deus não perdoou — e quem inventou o perdão, então? — e os expulsou dos seus jardins castigando a mulher com dores no parto e ao homem com o relógio de ponto. E como deus não dá asas à cobra, ao contrário, arrancou-lhe as patas, condenando-a a rastejar-se e a ser odiada pelas mulheres (assim como as lagartas e baratas) até as últimas gerações.

Adão e Eva, sem ocupação e com secular libido, amavam-se debalde (mas ele não tinham sido expulsos do paraíso?), e daí vieram os filhos: Caim e Abel. Os coitados, como numa lagoa azul, não souberam educar seus filhos, não havia escola nem a SuperNanny, e a ira entre eles cresceu a ponto de um irmão matar o outro. O assassino — não havia delegacia nem noticiários populares — foi banido de casa, castigado por deus a carregar chifres — que as más línguas diziam ser herança do pai — mas logo encontrou um lugar melhor (havia outro?) onde ninguém o conhecia, vivendo biblicamente feliz para sempre.

Adão viveu apenas 900 anos. Deveria ter algum viagra natural, pois continuou a gerar filhos que transavam uns com os outros, na mais pura e incestuosa matemática celestial.

O deus, desiludido com a má criação, mas sem dar o braço a torcer — à nossa imagem e semelhança, deveria tê-lo —, agitando as pontas de seu lenço, lançou suspiros ao infinito e clamou: “Que calor! Que desenfreado calor!” E, para encerrar o invento, criou o escritor para que registrasse tudo, sabido que seus seguidores seriam todos pescadores e pastores analfabetos. Nascia a Crônica e o Machado! Mas, ah, que pena, os inventores da imprensa foram os ateus chineses...

Raymundo Netto, autor de O Conto no Passado: cadeiras na calçada e dos infanto-juvenis A Bola da Vez e A Casa de Todos e de Ninguém (ambos pela Edições Demócrito Rocha). É coeditor do CAOS Portátil: um almanaque de contos e da Para Mamíferos e, desde 2007, é cronista convidado do caderno Vida & Arte do jornal O POVO.

Um comentário:

  1. Algumas considerações, Ray...
    Atualmente quase todo Adão é bobo, mas o relógio de ponto não é mais castigo só dele - eu q o diga.
    A minha "Feiticeira branca" não está no céu, mas no quintal. Foi assim que minha sobrinha apelidou uma gata alvíssima que minha mãe insiste em chamar de "Sherazade".
    Se a Música é a Matemática cantada... Os hits do século XXI são erros de tabuada???
    Abraços!

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