segunda-feira, 30 de março de 2020

"O Homem que não Sabia Morrer", de Raymundo Netto para O POVO



Benigno despertou em um assombro extraordinário. Por cima dos olhos tingidos de pavor, uma interrogação reluzia: “Qual o sentido de minha vida?”
Mastigando cereais vencidos à mesa há anos solitária, buscava por algum premeditado e egoístico ato heroico – como na maioria os são. Precisava abraçar uma causa nobre, aquela a valer alguma fatia de glória imediata, o suficiente para sua alheia autoestima.
Assistindo na TV a um histérico e dispensável noticioso policial – como a maioria também o é –, soube que em certo lugar, na fronteira do país, havia contrabandistas de órgãos humanos. Por associação esdrúxula de ideias, imaginou o destino de tais órgãos: o salvamento de outras vidas! Sem demora, comprou passagem e se dirigiu àquele lugar resolvido a lhes ceder um rim.
Contrariando a máxima do Barão de Itararé que afirma “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”, nem mesmo eu sei explicar como o tonto, extasiado na sua felicidade burguesa, conseguiu encontrar tais contrabandistas.
Eles, claro, ainda ressaqueados da noite anterior, riram-se a valer – também sem entender nada – e, com todas as honras, o anestesiaram e, depois, em torpor profundo, o rebolaram no bagageiro sujo da van, sala de cirurgia improvisada. 
Nesse momento, diante da inesperada novidade, os malvados perceberam que poderiam tomar não apenas um rim, mas os dois. Aliás, se já estavam ali mesmo, por que não arrancar tudo aquilo que pudesse ser de proveito? Assim o fizeram. Levaram tudo: rins, fígado, coração, pulmões, córneas, pâncreas, intestinos... e o que deu. Motivados por uma bizarra gentileza, fecharam as suturas e largaram o corpo gordo e nu à beira da estrada.
No dia seguinte, Benigno acordou. Sentia-se mal, porém, mais leve. Sem córneas, não viu ninguém. Percebeu pelo corpo as diversas costuras grosseiras e malfeitas. As linhas de fios grossos espetavam o inchaço da pele inteira. Todavia, mesmo quando percebeu-se enganado, não conseguia sentir ódio, pois a ele faltava o coração.
Ao ser encontrado por populares, tentaram em vão descobrir contatos de parentes, amigos, colegas que pudessem vir buscá-lo, socorrê-lo em tão inusitada situação. Mas ele não se lembrou de ninguém – e não foi porque levaram também o seu cérebro, só por diversão, é claro. O homem adorava a solidão, era avesso às manias e celebrações humanas e ao cheiro de animais. Desconfiava de todo mundo, evitava sair de casa, seu maior refúgio, e assim afastou-se de tudo e de todos.
No leito ao corredor do hospital de caridade, ao questionar o médico plantonista sobre a gravidade de seu caso, recebeu cruel prognóstico: “Lamento, o senhor não pode mais morrer!”
Sim, com a ausência de seus órgãos vitais, seria impossível o infarto, a trombose, cirrose, enfisema, tuberculose, demência, nem a simples pneumoniazinha... “Meu Deus, estou perdido para sempre”, angustiava-se o desanimado Benigno, cujo sangue gelava parado em seu corpo imortal, enquanto revelava-se que, de fato, já havia morrido desde quando passou a não existir para mais ninguém.




8 comentários:

  1. Sísifo, Tântalo, Prometeu: fichinhas. O deus que os condenou ao sofrimento eterno: fichinha. Benigno sobressai com sobras nesse elenco condenado à eternidade. Ele, a personagem,foi desorganado por um narrador monorgânico, ou seja, constituído de um único órgão - sua criatividade. Pâncreas, fígado, rins, criatividade são órgãos vitais. Criaturas destituídas de órgãos vitais e criadores possuidores de um único órgão vital são amorais. Aos primeiros falta o sentimento de sua condenação. Por exemplo: como viver sem um inimigo figadal? Só a imortalidade para tornar a " vida " assim suportável. Aos segundos, o da extensão e do conteúdo da condenação que profere às suas criaturas. A imortalidade é insuportável, seja pela lembrança, seja pelo esquecimento.

    Sísifo, Tântalo, Prometeu: fichinhas. O deus que proferiu suas sentenças e as fez executar: fichina. No mundo da existência há o homem, ser dotado de moral. É nesse mundo que sente o autor. A malignidade seria desse domínio?

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  2. Qualquer semelhança ao Bozo é mera coincidência.

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  3. Difícil analisar esse texto do Raymundo Netto. Na estrutura, dentro do fantástico, foge dos códigos, apesar de tb sê-lo. Nas significações, dentro do códigos existenciais (e pós), tb foge dos códigos - haja vista o personagem não ter materialidade social (só a tem no universo fantástico), apesar de tb sê-lo, afinal, é personagem. Então, o que fazer? Encarar a história como narrativa pós-pós-moderna, em que, diante dos códigos e dos elos sociais, tudo é possível. É um jogo de narrativas, de verdades, cujo interesse é diverso, vário. Não há verdade. Tanto é, que o personagem só se molda como algo pertencente a alguma coisa, quando morre e desmorre.

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    1. Grato, Pardal, pelas reflexões literárias sobre tais códigos e símbolos. Honrado com sua presença por aqui.

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  4. Raymundo, já dizia um velho conhecido, a quem muito admirei, que o texto tem tantas camadas como sejam necessárias para dar conta da infinidade de seus leitores. O seu é assim, desdobra-se até onde cada leitor chega, e os seus, a julgar pelos comentários acima, vão longe, muito longe. Que bom ler você!!!

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    1. Muito grato, Maria Inês, pela sua leitura. Sempre bem-vinda. Grande abraço.

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