Cesário Alves entregava
seus dias a assistir obsessivo a antigos vídeos na TV em sua pequena e escura
sala de quitinete. Nem se importava nem contava quantas vezes já os havia
assistido. Sorria, chorava, se enternecia diante daquelas imagens reproduzidas
em seu videocassete.
Naquele
momento, seu coração lhe orgulhava a certeza de que, em vida, como poucos,
conseguiu realizar seu maior sonho: ser ator! “César Nonricordato”, como seria
chamado, foi uma das maiores promessas da história da televisão brasileira.
Por outro
lado, logo pela manhã ou mesmo antes de dormir, Cesário padecia de uma dor: o
confronto com o espelho. Evitava-o enquanto pudesse. Não sendo possível, fixava-se
àquela imagem a refletir a sua ruína. Torcia o pescoço lentamente de um lado a
outro. Catava os fios de cabelos finos e os enganchava para o lado com auxílio
de uma pasta oleosa. Esticava a pele em torno dos olhos e das pálpebras caídas.
Contava os sinais e as rugas, ressentia-se da perda dos dentes – o sorriso roubado
– e do azulado olhar, hoje, quase cinza, de uma palidez incômoda: “Por que não
morro de uma vez?”
Da mesma
forma que não se via ali, na rua ou na renovada vizinhança não seria mais lembrado
ou reconhecido. Às vezes, no centro da cidade, ainda de encontrar senhoras a
lhe apontar o nome daquele personagem de sucesso: “Cristiano, é você mesmo?”
Ele então sentia lhe acender o espírito diante do brilho do pasmo alheio. Um
abraço, antes impossível de galã de novela, acontecia. O desencanto vinha
depois: “Mas você mudou tanto... Nunca mais na TV!”
Com efeito,
há muitos, muitos anos não recebia convite nenhum. Da última vez, após muitos
apelos a um amigo, executivo da antiga emissora, recebeu um papel: o avô da
protagonista, idoso e com Alzheimer em estágio terminal. Não havia falas. O
personagem apareceria ocasionalmente em cenas em que vegetaria a cores para
todo o país. A memória ainda lhe doía, mas recusara solenemente o papel,
humilhado, destruído, fracassado como nunca.
Chegando em
casa, tirara de cima do armário o álbum de recortes de revistas, pôsteres e
jornais. Ali estava ele ao lado das atrizes mais bonitas e famosas do país.
Sim, beijara aquelas bocas, sentira de perto seus hálitos, o calor de seus
corpos. Algumas delas, além de jornalistas, modelos, gente da TV, levara para
cama, com outras se casara, até quando não havia ninguém suficiente para ele: “Bonito
demais. Assediado demais. Sozinho demais.”
Naquele
dia, determinou-se a encarar a figura decrépita a assombrá-lo no espelho. Tinha
que provar para si que ainda podia. Trajando um blazer de flanela e o rosto
empoado, interpretaria uma cena de final de novela, ainda em P&B, aquela que
comoveu a milhões de telespectadores. Ao fundo, uma fita cassete rodava, quase
estrangulada, a trilha sonora do casal. César, agora diante daquele espelho, veria
nitidamente o rosto da mocinha com aplique de peruca e largos cílios postiços a
esgotar para ele o olhar apaixonado de todas as possíveis mulheres. Por último,
o tão acalentado beijo, o frenesi, a música em seu gran finale a espremer os corações em lágrimas, a engasgar soluços,
a promover as esperanças e a crença na vitória do amor. Reinava ali a grande
estrela, César Nonricordato, em seu último capítulo, num abraço desatinado a lembranças
indeléveis, mergulhado sem volta na superfície polida a devorar a grande
estrela... FIM.
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