domingo, 23 de junho de 2024

"Esperança", de Raymundo Netto para O POVO


Ao contrário do que o nome insinuava, Gastão era um genuíno “mão de vaca”. Aos mais próximos, perguntassem pelo seu dinheiro, respondiam: “nem a cor”.

Esperança, quando moça, solteira e sonhadora, deixou-se levar pelos ouvidos: ela tinha tudo para conquistar aquele coração ainda virgem e distraído do mundo. Afinal, o rapaz até que era bem-apessoado e, mexericavam, apesar da tímida, humilde e descuidada aparência, possuía fortuna. Dito e feito. Gastão se rendeu, não fácil, aos encantos das pernocas de Esperança, pendulares na calçada do armarinho “Kerim”, negócio herdado de família. Entretanto, contrariando os contos de fada, nos quais o “felizes para sempre” vem logo após o casamento, neste, de Gastão e Esperança, mesmo antes dele a coisa já descia ladeira abaixo. Para começar, Gastão exigiu que os pais de Esperança bancassem tudo, da igreja à lua de mel, pulando a festa, que só servia para encher o bucho e a cara de oportunistas. “Gastar com festa para quê?” Porém não abriu mão dessa “economia”, levando-a consigo para as núpcias em imprevisto motel barato, deixando os pais de Esperança na maior penhora.

Retornando de uma lua sem queijo nem mel, encontramos uma Esperança abatida, magra e com imensa dificuldade de se adaptar à rotina imposta pelo marido. Faltava de tudo naquela casa. Às vezes, nem onde sentar. Quando reclamava, ele dizia: “Para quê gastar com mobília? Precisamos de espaço.” Mas o pior mesmo era a ausência de água encanada. Sempre que precisasse, ela teria que pegar água do poço no quintal. O barulho estridente das roldanas dava-lhe nos nervos. Gastão, debruçado em suas obsessivas contas, acompanhava esse movimento diário: “Lavando a louça do café... aguando as plantas... lavando a casa... lavando a louça do almoço... tomando banho... preparando o meu...”

Esperança se queixava: estava cheia de calos nas mãos, sentia dores nas costas, aquilo lhe tomava o dia inteiro, não poderiam contratar uma empregada? “Gastar com empregada para quê? Uma estranha em casa? Só se for para nos roubar!”

Aos domingos, na hora do almoço, Gastão dizia ser tomado por uma súbita saudade dos sogros e se convidava à mesa, mesmo quando Esperança ficava em casa: “Gastar com almoço para quê? A comida da sua mãe é incomparável.”

Durante anos, Esperança haveria de continuar a sua labuta exaustiva de puxar a balde a água da casa, diante das desculpas prontas do marido. Queria vestido novo para ir à missa: “Gastar para ir à missa? Deus está aqui também!” Queria ir à cabelereira: “Gastar com cabelos? Corta bem curtinhos... eu gosto!” Queria viajar: “Gastar com viagem para que se vai voltar sempre?”. E se queria comer alguma coisa diferente, ele liberava uma caixinha de creme de leite e a despejava no que estivesse mais perto, fosse pão, ovo, macarrão... Sobretudo, Gastão também achava um absurdo as contas da farmácia e, tendo detectado um “sopro no coração”, decidiu não gastar com remédios e médicos. Então, após receber cobrança de fornecedor, teve um piripaque e defuntou ali mesmo, prostrado sobre o seu venerado livro-caixa. A notícia se espalhou, os familiares correram ao local e encontraram Esperança apática ao lado do marido morto. Todos demonstravam um dissimulado interesse, choravam, abraçavam a viúva e se ofereciam para ajudar nos preparativos dos rituais fúnebres. Foi quando Esperança pegou um velho surrão sujo e com esforço colocou o morto dentro. Fechou o saco, o arrastou ao quintal, o jogou dentro e bem no fundo do poço e mandou um pedreiro selar a sua boca de uma vez por todas. Diante do pasmo geral, a mulher, suando em bicas e batendo a sujeira das palmas das mãos calejadas, asseverou: “Gastar com buraco para quê?”

Na semana seguinte estava ela, com os pais, mordendo ávida e feliz um croissant duro em um café francês. C’est la vie.



 


 

quarta-feira, 19 de junho de 2024

"Uma Palavra sobre Chico Buarque: o escritor", de Raymundo Netto


Sobre a sua persona de escritor, podemos afirmar que Chico Buarque, esse canceriano carioca, é um imenso poeta. Para comprovar, basta não ser surdo nem cego. Sua obra poética – muitas vezes enredada à dramaturgia e à crônica –, a diversidade de eu-líricos, a riqueza temática, o ritmo (que sobrevive à ausência melódica), entre outros fatores linguísticos asseguram a qualidade desse poeta-letrista.

No entanto, não é, pelo menos de todo, essa voz que entranha a sua prosa. Desconsiderando algumas obras de menor projeção, sua carreira literária teve seu início com o inquieto, alucinado e quase experimental romance “Estorvo” (1992), que li ainda quando da primeira edição, e não gostei. Porém, como não apito, tornou-se o ganhador do Jabuti, assim como outros títulos seus.

Em 1995, veio outro romance, “Benjamim”, rico em imagens, tendendo ao cinematográfico. Ao contrário de “Estorvo”, narrado na 3ª pessoa, traz um personagem bastante curioso, o tal Benjamim Zambraia, uma espécie de flaneur neurótico que tinha a impressão de estar sendo sempre observado e/ou filmado em um cenário de regime militar. Ótimo livro – o que mais gostei, simplesmente –, escrito com muito apuro e um final surpreendente, apesar de.

Em 2003, compôs “Budapeste”, livro enaltecido com louvores de inovação por José Saramago. O personagem, um ghost-writer, o proscrito, o temor de qualquer escritor(a), aquele que “progride nas sombras” e tem vaidade com seu anonimato. É perceptível na leitura da obra o emprego do esmero necessário que se presta à construção realmente literária, mas sem necessidade de firulas e rodeios, sendo diversamente onírico, humorado e recheado de boa imaginação e, em muitos pontos, complexo, como a língua húngara, quase uma personagem da trama.

“Leite Derramado” (2009), foi o último livro de Chico Buarque que tive acesso (não li os romances “O Irmão Alemão”, “Essa Gente” nem o livro de contos “Anos de Chumbo”). Muito interessante, de leitura saborosa, a história do velho Eulálio, mesmo que aparentemente – ou certamente – delirante, traz alguns elementos do passado do personagem, revolvendo um pouco da história do país, questões familiares, misturando passado, presente e senilidade, sempre com algo de humor e ao mesmo tempo, direta e indiretamente, remetendo sobre reveses da vida e a fragilidade mental e psíquica dos idosos. Mesmo que em alguns pontos se perceba a caduquice contagiar o desenvolvimento do texto, é certamente uma ótima leitura.

Independentemente de controvérsias e suspeitas sobre premiações do mercado editorial, privilégios midiáticos, entre outros humores, Chico Buarque conquistou o Prêmio Camões de Literatura – num cenário bem buarqueano, eu diria –, o maior da língua portuguesa, e é difícil dizer que não o mereça, embora na bagunça de meu coração e na desordem do armário embutido, ainda sinta que o poeta é mais urgente que o prosador... e amanhã há de ser outro dia.