Sobre a sua persona de escritor, podemos afirmar que Chico Buarque, esse canceriano carioca,
é um imenso poeta. Para comprovar, basta não ser surdo nem cego. Sua obra
poética – muitas vezes enredada à dramaturgia e à crônica –, a diversidade de
eu-líricos, a riqueza temática, o ritmo (que sobrevive à ausência melódica),
entre outros fatores linguísticos asseguram a qualidade desse poeta-letrista.
No entanto, não é, pelo menos de todo, essa voz que entranha
a sua prosa. Desconsiderando algumas obras de menor projeção, sua carreira
literária teve seu início com o inquieto, alucinado e quase experimental
romance “Estorvo” (1992), que li ainda quando da primeira edição, e não gostei.
Porém, como não apito, tornou-se o ganhador do Jabuti, assim como outros
títulos seus.
Em 1995, veio outro romance, “Benjamim”, rico em imagens,
tendendo ao cinematográfico. Ao contrário de “Estorvo”, narrado na 3ª pessoa,
traz um personagem bastante curioso, o tal Benjamim Zambraia, uma espécie de flaneur
neurótico que tinha a impressão de estar sendo sempre observado e/ou filmado em
um cenário de regime militar. Ótimo livro – o que mais gostei, simplesmente –,
escrito com muito apuro e um final surpreendente, apesar de.
Em 2003, compôs “Budapeste”, livro enaltecido com louvores de
inovação por José Saramago. O personagem, um ghost-writer, o proscrito,
o temor de qualquer escritor(a), aquele que “progride nas sombras” e tem
vaidade com seu anonimato. É perceptível na leitura da obra o emprego do esmero
necessário que se presta à construção realmente literária, mas sem necessidade
de firulas e rodeios, sendo diversamente onírico, humorado e recheado de boa
imaginação e, em muitos pontos, complexo, como a língua húngara, quase uma
personagem da trama.
“Leite Derramado” (2009), foi o último livro de Chico Buarque
que tive acesso (não li os romances “O Irmão Alemão”, “Essa Gente” nem o livro
de contos “Anos de Chumbo”). Muito interessante, de leitura saborosa, a
história do velho Eulálio, mesmo que aparentemente – ou certamente – delirante,
traz alguns elementos do passado do personagem, revolvendo um pouco da história
do país, questões familiares, misturando passado, presente e senilidade, sempre
com algo de humor e ao mesmo tempo, direta e indiretamente, remetendo sobre reveses
da vida e a fragilidade mental e psíquica dos idosos. Mesmo que em alguns
pontos se perceba a caduquice contagiar o desenvolvimento do texto, é certamente
uma ótima leitura.
Independentemente de controvérsias e suspeitas sobre
premiações do mercado editorial, privilégios midiáticos, entre outros humores,
Chico Buarque conquistou o Prêmio Camões de Literatura – num cenário bem
buarqueano, eu diria –, o maior da língua portuguesa, e é difícil dizer que não
o mereça, embora na bagunça de meu coração e na desordem do armário embutido,
ainda sinta que o poeta é mais urgente que o prosador... e amanhã há de ser
outro dia.
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