segunda-feira, 18 de março de 2024

"Hotel São Pedro: estertores finais", de Raymundo Netto para O POVO

O polêmico infortúnio do Hotel São Pedro (ou Iracema Plaza), edificação em forma de navio, que singra a região desde 1951, um dos pioneiros do ramo hoteleiro na orla da cidade, entre outras peculiaridades arquitetônicas e turísticas, é apenas mais um capítulo da nossa Fortaleza distraída e ambiciosa. Uma cidade sem passado, sem rosto, sem futuro possível.

Há quem diga, no discurso nostálgico, idealizado e falso: “Antigamente as pessoas respeitavam mais o que era antigo”. Isso é uma disparatada ilusão e, para não romantizar mais, outra mentira! Contamos nos dedos as nossas edificações construídas no século XIX. As poucas que restam, e muito poucas – por experiência, em breve, ainda menos –, datam do início do século XX, pois que nossos pais e avós, que Deus os tenham e os perdoem, já gostavam mesmo do “novo”, dos “modismos”. Naquela época, patrimônio era apenas uma palavra horrorosa e sem sentido, a não ser para aquela minúscula e sempre poderosa parcela privilegiada que já nasce em berço de ouro (que depois vira patrimônio e até razão de morte em família) e que sabe bem o valor que um patrimônio (financeiro) tem. Daí, em 2024, quando o exótico e imponente prédio completa 73 anos de existência e divina resistência, nós fazemos com ele o que a sociedade ignorante, consumista e desperdiçadora faz com os nossos idosos: os reconhecem como inúteis, desprezam a sua história, o seu legado, os seus feitos em vida produtiva e passam a desejar que se vão, que morram logo para não dar mais trabalho e ocupar aquele lugar que poderia ser de outro. Afinal, já viveu demais... e o povo gosta mesmo é de plástico, espelhos, silicone e BBB!

Vejamos: há 18 anos – acredite, tempo suficiente – teve início o seu processo de tombamento. O que foi feito desde então? Nada! “Deixa cair! Quero é ver!”

Acontece algo assim também com outro prédio na cidade, que, como não poderia ser diferente, pertence a uma família iletrada, rica de dinheiro e de cultura de TV. O proprietário já afirmou, com toda a sua autoridade (ou boçalidade) política e bancária: “se tombarem, eu o derrubo!” Lembremos da inocente canção: “quem tem mais do que precisa ter, quase sempre se convence que não tem o bastante.”

Coincidentemente, desde o início do processo, o São Pedro ficou à deriva diante do esvaziamento dos últimos moradores e do seu desrespeitoso, gradual e acelerado desmonte. Alia-se a isso, a falta de decisão e de ação do Poder Público (uma legislação que treme feito vara verde) e os conflitos de interesses com a família proprietária, irmanando-o com o “Mara Hope”, outro “encalhe” na nossa deflorada Praia de Iracema, a praia dos amores, que devem estar por vir com os escafandristas do futuro buarqueano.

Nos meus inquietantes sonhos, esses concentradores de renda têm a noção de retribuir à cidade e à sociedade – que bem sabem ser explorada a seu serviço – esses patrimônios. Que as grandes construtoras, curiosamente generosas em doações abundantes e “despretensiosas” durante as campanhas políticas, unidas, usassem desses recursos na solução de casos como esse, quando a engenharia poderia mostrar o seu valor. E que os gestores, com coragem e mais atentos aos clamores sociais (e não políticos, partidários e/ou econômicos) e àquilo que a sociedade precisa, mesmo quando não entende ou não sabe, abraçassem essas causas, articulassem parcerias estratégicas e inteligentes, tomassem a frente de campanhas de mobilização de recursos para cumprir e fazer valer o idílico “pertencimento”. E que o nosso “Titanic de tijolos”, que há quem diga “Nem Deus derruba”, não se choque com o vil iceberg “da força da grana que ergue e destrói coisas belas.”


(*) texto adaptado do anterior de 2021, mas como nada mudou...

 



 

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