Cansado de ouvir os reclamos da mulher todos os dias à
beira do fogão, Zé Panapanã, que acabava de chegar da lida na roça, ainda
salgado em suor e com as pernas “à milanesa”, largou a enxada e mergulhou na
primeira rede que encontrou no alpendre.
Quando
pronto o almoço, não se buliu. Nem quando a mulher, insistente, sacudia o punho
daquela rede: “Tá morto, Zé? Ôxe, nem pra comer se mexe? Avia!” E nada.
Poderia
ser birra, o Zé era teimoso e ao mesmo tempo não tinha ambições, nem as
pequenas, mais queria o sossego do que tudo no mundo. Dali não sairia, nem para
comer, para ir ao banheiro, pitar seu cigarrinho ou dormir.
A
mulher se preocupou, mas achava que o turrão não resistiria à frieza cortante
da noite. Porém, ao acordar, ela o encontrou ainda mais embiocado, não se vendo
nem uma brechinha do homem na rede: “Vai trabalhar hoje, não, preguiçoso? Aqui
não tem café pra gente dorminhoca, viu?” Não adiantava. Por mais que Solange
berrasse às franjas da rede, o Zé não dava um pio. Dias depois ela decidiu
consultar o farmacêutico da cidade que, na falta de outro doutor, poderia ter
com o marido: “Tá custando dentro da tipoia, seu Augusto. Não levanta pra nada,
nem pra comer, nem pras necessidades. Deve de tá doente... mas não fala
nada...”
O
farmacêutico estranhou a história e, por curiosidade, descambou a visita.
Chegou
batendo sonoras palmas no batente da casa, como se não soubesse estar logo ali,
recolhido na rede, o marido de Solange.
Arrastou
um tamborete, tentou puxar conversa, sem sucesso. Perguntou se sentia dor, se
havia diarreia, alguma anemia, dificuldade de respiração. Com esforço, vez ou
outra ouvia um sussurro, uma espécie de “deixe estar” ou coisa parecida. Puxava
o pano da rede tentando abri-la para examiná-lo e não conseguia. Já irritado,
porém percebendo a aflição da mulher, receitou algumas mezinhas: “Deve ser
somente alguma verminose associada à cisma mesmo. Paciência.”
Todavia,
o certo é que nem Solange conseguia que o Zé tomasse qualquer coisa, como nem
aqueles poucos sussurros se ouviam mais. Ela apelaria, então, ao jovem pároco
local. Ele, de cara, denunciava a ausência divina no coração daquele homem que,
inclusive, nunca pisara a soleira da igreja e não cumpria sequer com os seus
sacramentos.
Em
uma primeira visita, tentou extrair, inutilmente, uma tal confissão. Depois,
clamando aos surdos céus, o provocou a levantar-se dali, ameaçando-o até de
excomunhão. Nada! “Está endemoninhado, só pode. Contra as forças do
Todo-Poderoso ninguém pode, dona Solange. E como deixar de atender a uma esposa
tão amável, caridosa e temente a Deus como a senhora? Só endemoninhado!” E
abraçava àquela mulher, que nem tinha ideia de que era aquilo tudo, e cuja face
pousava agora menos inocentemente na sacra batina quase tão cerrada quanto a
rede do Zé.
No
domingo, uma romaria se quedava em torno da encolhida rede de Zé Panapanã.
Dezenas de fiéis da paróquia, empunhando missais, velas de todos os calibres,
terços e rosários, cantavam hinos e rezavam pela cura do marido de Solange, que
já trazia ares de viúva, mas uma viúva bem fornida, disposta, aparentemente
melhor do que antes da crise, sempre ao lado do padre, cuja oratória –
confessava – lhe causava um certo frenesi.
Foi
ali, naquele instante divinal, que alguém apontou de joelhos para a rede que se
abria lentamente. Todos, boquiabertos, se abraçando ou fazendo o sinal da cruz,
testemunharam sair da fresta aberta da rede uma borboleta cujas asas batiam
incessantes, carregando a criaturinha para onde avermelhava o horizonte e para
longe daqueles barulhosos vizinhos.
Mudar pra viver feliz. A vida é assim, transformação permanente. Há quem lute e busque.
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