Uma manhã iluminada e brilhante escorria
pela varanda fresca do apartamento quando Davina sonoramente deu por certa a
condição do marido: “Você é um idiota! I-di-o-ta!” Dito isso, lançou-se porta
afora, a bolsa ainda pendente, irritada e atrasada para o trabalho.
Elias, que mal havia acordado, ficaria por muito
ainda ali, imóvel como uma estátua de Rodin, digerindo o adjetivo a ele
empregado. Pensava, e não sabia por que se dava ao trabalho, sobre a última vez
que ouvira dirigido a ele tamanho agravo. Nem lembrava!
Na verdade, Elias era homem público. Sabia-se
carismático, cientista reconhecido e premiado pela sua intelectualidade e vasto
conhecimento, um líder, um homem da paz. “Tal homem”, ruminava em sua filosofia
mais vã, típica dos solitários, “só poderia encontrar um lugar no mundo onde
poderia ser menosprezado e humilhado. Esse lugar seria, paradoxalmente, na sua
casa, no seio familiar e pela própria mulher.”
A frase, durante os instantes do café também mal
digerido, foi construída, descontruída e reformulada num exercício digno de
quem faz do pensamento o seu próprio chão. Porém, no entardecer do natural
percurso, algumas dúvidas obscurecem e ele saiu de casa se sentindo pequeno,
terrivelmente pequeno e nulo, uma pulga, ou o filho de uma, de maneira que teve
que pular degrau por degrau da escada e, não conseguindo abrir a porta do
carro, determinou-se a ir a pé à Universidade que, embora não fosse distante dali,
naquela situação, só chegaria, com muito esforço e risco, quase ao final da
manhã.
Chegando, a recepcionista o saudou, estranhando o seu
silêncio, enquanto ele passava por baixo da porta. A sua secretária, vendo-o
tão diminuto, o pegou, o colocou no colo e, com o indicador, pôs-se a fazer
carinho naquilo que parecia ser as suas costas. Meio sem jeito, Elias traçou um
longo caminho de conjecturas, quase mitológicas, sobre a existência humana até
chegar à injúria disparada contra ele. Ela mostrou-se solidária e até reprovou
a insensibilidade da esposa: “Será que ela não vê? O senhor é, é... um gênio!”
Daqui a pouco, algumas outras colegas, curiosas,
comoveram-se com a dor daquele serzinho e tomaram coro num sarau elogioso de
fazer corar o Barba Azul. Com isso, logo, logo, Elias teve que sair – a
contragosto – do colo da colega, pois crescia a olhos vistos a cada depoimento
e relatos generosos sobre as suas inúmeras qualidades. Assim, com pouco, teve
que trabalhar do lado de fora do prédio, pois, agigantado como estava, não
cabia mais nele. Suas aulas, recebidas sempre com admiração e aplausos efusivos,
foram ministradas naquela tarde ao ar livre, no anfiteatro da Universidade.
Ao final do expediente, Elias, como remoçado, cheio
de ideias e planos para o futuro, despediu-se dos colegas, agradecendo a todos
pela empatia e humanidade, e pôs-se para casa, assoviando e medindo os passos
para não causar estragos no trânsito da avenida.
Ao chegar à quadra de seu edifício, foi surpreendido
com uma pedra lançada em sua testa e desabou no chão. Antes de desmaiar, porém,
viu Davina, com uma funda a rodopiar em sua mão, gritando: “Pensa que tenho
medo? Tamanho não é documento, não!”
Então, novamente reduzido, desacordado e no estado
ideal de inconsciência, Davina o recolheu da calçada, colocando-o na palma de
sua mão e, após carinhoso beijo e juras de amor, o deitou na cama do casal,
atraiçoado berço da felicidade eterna, enquanto que, para Elias, o que lhe
restava era sonhar com o consolo do regaço quente da secretária.
Kafka ficaria com dó da sua pulga kkkk
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ResponderExcluirParabéns. Excelente crônica.
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