Em diversas ocasiões constatei que
a vida imita a ficção bem mais que seu contrário, não raros são os casos em que
um fato recentemente acontecido nos remete a textos há tempos escritos, seja em
qualquer gênero: numa conversa na repartição alguém contou do caso amoroso
entre colegas em que um casmurro sujeito era apaixonado por outra sapeca ruiva,
que por sua vez morria de amores por um coroa meio gordinho e sem graça, que só
tinha olhos para a elegante e esquiva magricela do sétimo andar, que nunca correspondeu
seus (meus?) olhares pidões e jurava fidelidade a J. Pinto Fernandes, que não
estava na história nem era conhecido por ninguém do prédio inteiro em que
circulávamos há décadas - o Poeta Carlos Drummond de Andrade acabou sem querer
interferindo na conversa.
Várias vezes, em entrevistas sobre
literatura, bate-papos em colégio sobre livros, alguém desenterra alguma
crônica ou conto cometidos por mim e pergunta sobre sua veracidade, se “aquele
que fala da moça que fugiu da cidade teria sido uma tia de um político em tal
cidade que sequer andei um dia?”, ou se “aquele crime em que o sujeito voltou
depois de décadas à sua terra natal para ser morto não teria relação com a
família dos Anzóis Carneiro?” Claro que digo que não, mesmo que alguém acerte
na hipótese, pois já sofri horrores ao ter personagens identificados com
pessoas “reais”, magoei familiares, amigos e conterrâneos. Por isso nego até a
morte: nem sabia de tal história; aproveito para inverter a sentença: a vida
imita (ou limita?) a arte!
Mas um
pequeno relato meu tem “acontecido” bastante em diversos lugares, o de um
personagem traidor, machista, diabólico (segundo os que me contam em meio a meu
espanto), que acaba prostrado e “cuidado” pela sua “vítima”: não foram poucos
os leitores que me relataram histórias quase idênticas a este reles continho da
década de 1990:
Bem antes
Ele nunca
fora caseiro; antes passava em casa apenas para trocar de roupa – resmungava um
desaforo à esposa enquanto se encharcava de perfume. Os antigos olhos tristes,
distantes na direção da porta que ele logo atravessaria para voltar apenas na
manhã seguinte. Agora fingia não notar que ela escondia na sala sua melhor
roupa, disfarçava no vestido a colônia de alfazema; cuidando resignadamente dos
mínimos detalhes: – Querido, se precisar do penico me chame. E ela de sono tão
profundo bem no quarto ali de lado: – Se eu não escutar, Lucinha acode, que ela
tem o sono mais leve. Na manhã seguinte também fingia não perceber seus olhos
inchados, o nervosismo das mãos, a solicitude gratuita, o amor eterno...
– Querido,
dormiu bem!? – E afirmava ele com a cabeça, o olhar distante; o lençol
escondendo a mancha de urina.
Ultimamente
nem a filha mais acordava, com o mesmo sono pesado da mãe – na hora do almoço
vislumbrava seus belos olhinhos vermelhos, que não mais o miravam de frente,
mas sempre procurando algo para fazer.
Também
fingia não notar o jeito cúmplice das duas; no passado: tão distantes – agora
altivos, mais de irmãs. Não ligava para o estacionar dos carros na frente da
casa, antes bem calma – pois sabia que inevitavelmente elas já estavam dormindo
no quarto ao lado: e quão inútil seria chamá-las.
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