segunda-feira, 28 de agosto de 2023

"Síndico", de Raymundo Netto para O POVO


“Só pode estar roubando, quem mais faria questão de ser síndico?” Ele faria: o Sebastião. Desde criança, quando aquela tia chata lhe puxou a bochecha e lascou a pergunta clichê: “O que o Tiãozinho da titia vai ser quando crescer, hein, hein?”, ele jogou de lado a chupeta e respondeu franzindo a testa: “Sínico!”

A família toda voltou-se para o rebento, imaginou mil coisas, mas a mãe, recebedora da língua de fogo de pentecostes que lhe dá proficiência no idioma Bebês, traduziu com tranquilidade e surpresa: “Ele quis dizer síndico... mas o porquê eu não sei. Síndico?”

Para uma coleguinha mais tarde, em um papo entusiasmado de adolescente, Bastião confessava: “Não vejo a hora de ser síndico.” Esfregava as mãos com apetite e até babava quando acariciava ali os seus anseios: “o líder maior de um condomínio!”. A menininha sardenta, com sua tola incompreensão, apertava o indicador na testa e dizia: “Mas, Tião, ninguém quer ser síndico...” O rapaz olhou para a moça em uma superioridade hostil, riu com o canto da boca e contestou: “Não é querer, mas poder. Ser síndico é para os escolhidos. Se não entende isso, não me serve como esposa.” É claro que depois dessa a garota lhe deu as costas e ele nunca mais a viu.

Ao final do ensino médio, Tião, que se debruçava eternamente nas quatro operações, foi eleito em uma assembleia do prédio onde morava com sua família. Seria síndico, oficialmente, quite com suas obrigações condominiais. Nos próximos anos, jamais perderia o posto. Começara como voluntário, sem remuneração, mas devido à eficiência quase sacerdótica agora estava contratado.

Não parava em seu apartamento, a não ser para refeições e à noite para dormir, claro, se não faltasse luz ou água, se o motor da bomba ou do portão elétrico não queimasse, se viesse o porteiro, se o elevador não travasse, não houvesse eventos no Salão de Festas, briga de família nos corredores ou alguém com som às alturas depois das 22h... Resumindo, quase não dormia, mas às 6h estava de pé, próximo à guarita da portaria, cumprimentando e desejando bons-dias a todas e a todos.

Seu orgulho maior era um molho de incontáveis chaves coloridas que carregava para cima e para baixo, tilintando e anunciando a passagem do “manda-chuva” do condomínio, ao mesmo tempo que pesava-lhe o cós da calça, deixando à vista o rego das nádegas.

Por falta de um santo especialista, era devoto de são Pedro, o dos porteiros, e, cria que, por extensão, dos síndicos. Com ele pendurado em uma correntinha no pescoço, passava o dia entrando e saindo dos apartamentos quando convidado, o que acontecia com frequência, para ajudar as senhoras donas da casa, as filhas dessas donas ou suas diaristas nos assuntos mais banais, como trocar uma lâmpada, observar uma privada vazando, colocar um pesado garrafão de água sobre a pia, segurar um cesto, empurrar sofás.

Ele, prestativo, tinha tempo para tudo, inclusive para tomar um café e ouvir confissões daquelas pessoas solitárias.

Um dia, anunciou-se um incêndio em um dos apartamentos. Um bem grande. O porteiro interfonou a todos: “Evacuar! Evacuar”!

Tião bateu à porta dos condôminos da brigada de incêndio: ninguém! Foram os primeiros a chegar à calçada.

Rapidamente a fumaça e o fogo se espalharam por todo canto. Não se sabe como, nem ele acreditava, mas as mangueiras não ejetavam água e os extintores não davam vencimento.

Súbito, ouvia gritos desesperados, corria aos andares em brasas, com labaredas que escorriam até dos forros de gesso, e descia com aqueles moradores. Descia, mas iria voltar, poderia ter outros. Pedia que subissem com ele para ajudar. Ninguém subia: “É louco?”.

Os sprinklers estouravam um a um nos andares, porém, era tarde, o edifício era mesmo que ver um quadro de Pompeia. Mesmo assim, como um capitão deve afundar com seu navio, Tião não arredaria o pé dali.

Quando os bombeiros finalmente chegaram, encontraram, em meio ao ambiente úmido e esfumaçado, apenas destroços carbonizados do prédio e de seu maior guardião, reconhecido somente pelo molho de chaves a luzir à luz de lanternas tardias.





 

2 comentários:

  1. De Tião a tição. Raymundo, tu és fogo mesmo! Quando é predestinação, o fogo arde e ninguém vê. No caso de Raymundo, o destino é fazer ler a fogo e a gargalhadas; no de Tião, o destino é ser carvão. Acabei de acordar; não acabo de rir. A condensação sinestésica realizada no parágrafo que vai de " Seu orgulho ... " a " ... deixando à vista o rego das nádegas. " é incendiária. Qualquer leitor entra em estado de ebulição e arde em gargalhadas. Mesmo o leitor que esteja síndico, mas não seja SÍNICO. Raymundo, não me vês; estou rindo. Não me ouves; estou gargalhando. E assim vou, de fio a pavio, em chamas de risos da desgraça alheia, como foi Sebastião de Tião a tição.

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    1. Como sempre, um comentário literário. rsrs Boa, prof. Armando Lucas.

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