A sisuda e determinada viuvez de
Dolorosa
era de causar espanto até no falecido.
Não fosse para comprar o
pão matutino, nunca de sair às ruas, de oferecer-se em janela e muito menos de
se desocupar em calçada. Durante o dia, flagrada em oração diante do bem
cuidado oratório, onde descansavam aromáticas flores do campo em torno do
derradeiro retrato de seu inesquecível amor. Depois, por horas, calava a
respiração na imagem do morto, impressa ainda mais no peito em luto. Assegurava
cumprir a clausura em vida, pois se dava por jurada ao ser amado, aquele que,
dizia, só lhe contrariara uma única vez: na prematura morte!
Assistindo àquele
martírio, imploravam os amigos: “Tão moça. Vai, mulher, viva!”. Para Dolorosa,
todavia, amor que o tempo consome não é amor. O verdadeiro, único e exclusivo
amor, herança maior do Deus que um dia os unira, sobrepujava a tudo, inclusive,
a ausência física, merecendo ele toda e qualquer renúncia. Realmente era esse
seu pensamento. Uma agonia, porém, a enredara, justo na solidão das eternas
noites solitárias, quando suores e desejos eram contidos violentamente a
pedradas de vergonha pela casta consciência. Sim, vivia ela um dilema secreto:
o despertar do querer por outro homem.
João era um jovem auxiliar
de padaria, bem mais moço que Dolorosa. Há meses, naquele estabelecimento, um
descuido: trocaram olhares, e, num desses, Dolorosa fraquejou. No momento não
sabia, mas João já a observava. Soube ele daquela viuvez defendida a todo
custo. Isso o atraía profundamente. Também ele, às noites, em seu catre
cheirando a farinha, se via perdido em lençol e no domínio da branquidão do
corpo intacto daquela mulher. Imaginava ela entregue e em delírios, por tanto
vigor reprimido. Naquelas manhãs, mesmo quando apartados pela lonjura
incalculável do balcão, lia, escrito nos olhos divinos dela, a recusa ao toque
alheio. Vê-la, sentir a polpa dos seus dedos ao receber os trocados do pão,
buscá-la no interior das janelas da casa escura, passaram a ser as suas
motivações de existir nesse mundo.
Um dia, Dolorosa despertou
lívida e mais cedo que o de costume. Aguardou a abertura das portas de ferro da
padaria. Correu ao longo do balcão e dirigiu-se ao rapaz. Entregou-lhe um
dinheiro: “Moço, preciso ir à rua. Você poderia levar meus pães mais tarde em
minha casa?”
João, surpreso, não
recusaria. Assim, ao vê-la passar de volta, imediatamente enrolou os pães e
plantou-se à sua porta, cuja soleira, há anos, não cruzava um coração
masculino.
Dolorosa o aguardava.
Ávida, abriu a porta e, por instantes, os dois permaneceram parados e mudos. O
que João não sabia é que ela não o via exatamente como a vida o pintara, mas,
sim, um quadro mórbido e repugnante. O corpo em ruínas e farrapos. Os ossos e
traços de músculos revelados por entre carnes escuras carcomidas em vermes. A
caveira sorridente a denunciar olhos amarelecidos, a língua negra e seca.
Apenas os restos da imagem do homem que um dia o marido, e não o João, foi.
Depois, cerrada a porta, a
respiração de ambos abrasava a casa de tal modo que os espelhos da sala
embaçaram, recusando assistir ao ritual feroz e lascivo daqueles amantes que
exalavam, no ardor do suor e do amor, o perfume frio e acolhedor da mais fiel
sepultura.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue coisa! Uma película mórbida me perspassou os sentidos! Um roteiro pronto pra uma cineasta. Parabéns. Prazer em conhecê-lo
ResponderExcluir29 de abril de 2023 às 2