Apolônio Eugênio de Mascarenhas Lobo, desde a primeva infância vulgarmente conhecido
pela alcunha “Ninguém”, teria algumas qualidades que o distinguiam da maioria
dos mortais: era boêmio, ateu, comunista e poeta. Havia outra, para ser sincero
com o leitor ou a leitora, que distraídos deixaram cair os olhos nessas apenas
sugeridas linhas: Ninguém nunca amara alguém! Sim, se dizia poeta e não vivera sequer
a mais mísera história de amor. Porém, como a vida não é nada perfeita e dada a
sua condição de reiterada improvisadora, deu-se que um dia Ninguém sentiu um
aperto inédito no peito, que, de tão original, pensou ele ser o seu fim... mas,
ao contrário, foi o começo!
Ao entrar numa loja de variedades,
encontrou-a, tímida, na seção feminina. Belíssima, a mais linda mulher em que
já pusera os olhos. Como encantado, aproximou-se dela, sussurrou algo em seu ouvido,
e ela parece ter gostado, pois dali sairiam os dois agarradinhos direto para a
casa daquele que, até então, ignorava esse estado de graça.
Durante semanas, Ninguém seria o homem
mais feliz do mundo, descoberto como num sonho, a percorrer a pé os versos
tortos sem eira nem beira dos desvairados amantes.
Quando nos passeios ao final da tarde, Ninguém
percebia os olhares zombeteiros e curiosos do populacho para o casal. Ele,
claro, sempre subestimado, supunha logo que estranhavam: “O que essa mulher tão
linda viu nessa coisinha?” Neste momento, ele olhava para a companheira e, ela,
altiva, não dava a mínima para eles. As lentes do coração violam a miopia do
olhar humano. Que os maledicentes se lixassem, se roessem de invejas, fossem
para o inferno: eles se amavam!
Às noites, vendo-a na cama, deslumbrante
e completamente nua, pronta para incendiá-lo, chegava a se envergonhar por
merecer tanto. Deitava com cuidado ao seu lado e diante das estrelas cadentes
que regem amores assim, tomava-lhe os seios, as nádegas, beijava cada poro de
seu corpo, chupava os dedos de seus pés. Daí flagrados pelo sol a espiar cedinho
na janela, percebiam a noite não ser suficiente para caber tanta paixão.
Contudo, com o passar do tempo,
inexplicavelmente, como injusta é a vida de quem ama, percebia a gélida
presença de seu silêncio, uma inesperada e incômoda apatia. Teria se entediado
com ele? Estava arrependida? Por vezes, enquanto ele inventava assuntos, contando
causos, falando de poetas e poemas ou de seu modesto – e quase insignificante –
trabalho de editor, a assistia sentada no sofá da sala, olhando distante pela
janela, como a divisar uma despedida anunciada.
Enfim, não aguentando mais a tortura da
indiferença e da desatenção, conversou com ela em prantos de morte. Podia
partir! Levasse com ela o seu coração, o seu mundo, nada mais importava. Estava
ferido, melhor não vê-la nunca mais. Ela, talvez surpresa com o inesperado
desfecho, nada falou. E assim se deu o fim de mais uma, entre tantas, histórias
de eterno amor.
Meses depois, Ninguém cruzava a calçada
da mesma loja em que encontrara a sua amada. Difícil olhar para o prédio e não se recordar
sofrido desse dia. Contudo, sobressaltou-se ao ver, expostos na vitrina da loja, ela ao
lado de um outro homem. Estava resplandecente como sempre, agora vestida de
branco, com véu e grinalda. O sorriso era o mesmo que ela o oferecia todas as
manhãs, só que então ela o dividia com aquele outro, um novo amor, de cravo na
lapela, também inerte, segurando levemente os dedos da mão enluvada. Parecia feliz, insuportavelmente
feliz, como nunca, e isso bastava para ele, que aprendera da forma mais cruel: o
verdadeiro amor pede renúncia e desesperança, mesmo que doa... e muito. Foi-se.
E até hoje, maldito pelo amor, sangrando de saudades e ciúmes, Ninguém é
triste.
Como sempre os seus escritos são ótimos.
ResponderExcluirAgradeço muito a sua leitura.
Excluirum ninguém cheio de qualidades, boa Raymundo, você é exemplo
ResponderExcluirrsrs De quê, Lucirene?
ExcluirObrigado pela leitura, Almir.
ResponderExcluirO que me parece é que mesmo triste. Só ao final, Ninguém virou Alguém. Acho que assim eu concluiria(se me permite a ousadia) : Alguém é triste.
ResponderExcluirCorrigindo: o que me parece é que só ao final, Ninguém virou Alguém. Assim eu concluiria (se me permite a ousadia): Alguém é triste.
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