Há mais de 60
anos, na onda de Guerra Fria, o satélite
soviético Sputnik I marcaria o início da corrida espacial, deixando a
potência estadunidense impotente diante da incalculada e atroz humilhação. Não
bastasse, um mês depois, novamente a U.R.S.S. promoveria o cazaque lançamento
ao espaço de um novo satélite, o Sputnik II. A novidade maior seria que
a bordo deste estaria acomodado o primeiro ser vivo a orbitar a Terra. Para o
orgulho feminino, e por um restritivo detalhe anatômico, o ser não seria “ele”,
mas “ela”, a cadela Laika, de apenas 3 anos. Ou seja, ela não falava, porém, já
latia.
Na época, dada como
morta em circunstâncias que iriam além das divisas atmosféricas e, portanto, da
jurisprudência mundial, o destino da heroína e mártir socialista se tornou
motivo de diversas conjecturas e teorias. Eu, no entanto, não acredito em
nenhuma delas e explico o porquê.
Há alguns anos,
fotografando as ruínas ferruginosas do mercado da carne da Aerolândia – hoje
completamente restaurado –, assisti a uma cena insólita: parecia um cão
descendo de paraquedas. Seria possível? Seguindo meu instinto de jornalista
diplomado em Ministério, corri até a base aérea para saber o que era aquilo.
No descampado, a vi
sobre as patas, mangas arregaçadas, a recolher as longas linhas de náilon e o
velame. Apresentou-se: era ela mesma, a Laika, em pessoa... ou melhor, em
cachorro. Incrível. E todos pensando que ela, há tempos, teria virado “hot
dog”!
Latindo
fluentemente em português, não demorou a demonstrar a garganta seca e a
perguntar, numa sinceridade quase gentílica, “onde poderia encontrar vodka”.
Ofereci-me a levá-la ao Benfica. Não bebo. Então, quando me pedem por álcool,
ou levo para a farmácia ou ao Benfica.
No caminho, por
meio de fórmulas complicadas, que fingi entender para não parecer mais burro, a
pequena vira-lata – insistia na tese de que pertencia a uma linhagem pouco
convencional de husky siberiano, mas... – me explicava: devido ao tempo
relativo, ela, que, teoricamente, deveria ter mais de 60 anos, gozava de uma
jovialidade impressionante. Falou também existir uma Sociedade Sideral
Protetora de Animais e que foram alguns de seus integrantes que a mantiveram
viva quando a equipe russa a largou de mão... Ouvindo tudo aquilo, eu que
desconfiava, agora tinha a absoluta certeza: “as vodcas do Benfica não
prestam!”
Contou-me mais. Com
tempo de sobra, além de encher o bucho com gelatina russa, leu de trás para
frente obras de Фёдор Миха́йлович Достое́вский e de Анто́н Па́влович
Че́хов, “gênios”, sendo agora também uma contista: “Aliás, a nossa literatura é
a melhor do mundo”. Pior é que é: Gogol, Tólstoi, Pushkin, Maiakoviski...
Assim, escreveu também diversos livros. Alguns teriam
feito bruto sucesso em Fobos, uma das luas de Marte, que, historicamente, vivia
em conflito com o planeta vermelho.
Nostálgica, a cãosmonauta falava de seu exílio, da
saudade das noites de lua em Moscou, da boêmia em São Petersburgo, até chegar
às alucinações da experiência da proximidade com a morte e do seu encontro com
Deus, num arrependimento legítimo de um Raskólnikov: “Estive, praticamente, nos braços
Dele, mais do que qualquer outro ser... mais até do que o Papa!”
Diante de outras
divagações e da tediosa mansidão canina, que percebia ir mais longe do que se
foi, arrisquei a obviedade: “Desculpe-me, Kaka, mas a pergunta é inevitável: a
Terra é mesmo azul?”
Sorrindo com graça
e humildade, lambeu o dorso de minha mão e perguntou: “Ora, Raymundo, você
esquece que os cães enxergam em preto e branco?”
Publicado em Quando o Amor é de Graça! (EDD,
2019)
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