A dona Morte
estava triste.
Tirante uns diligentes suicidas – muitos deles querem se matar, mas não querem
morrer –, era mesmo a indesejada das gentes.
Há
zilhanos, desde que o mundo é mundo vasto mundo, transitava ela por aqui,
sempre à espera do instante solene de sua existência. Sim, existência, porque
vida mesmo a Morte não tinha. Seria quase uma condição sine qua non para
ela, declinar de qualquer estertor de vidas, não se apegar a nenhuma delas, ser
no mundo a grande cultora de cascas vazias. Assim, pensava-se, fora ela criada
e experimentada na mais suprema incompreensão, sem possibilidade sequer de
curtir seus frios seguidores e sem nunca se permitir prazer nenhum. Afinal, o
prazer, assim como a alegria e o amor, dizem, é condição de vida. Entretanto,
no nada absoluto do mundo, mantinha ela um segredo: morrera de amores uma única
vez na vida – pelo poeta Dante, que conseguiu convencê-la, numa promessa
de Vita Nova, que o amor seria o prelúdio da morte, estratagema
depois revelado para aproximar-se da sua amada Beatrice. Daí, sepultou de vez
todas as afeições e o seu coração traído com Dante foi-se. E a foice com Dante!
É
raro que as pessoas dediquem seu tempo – de vida, porque o tempo da morte é o
silêncio – em aprender a morrer. Já dizia Sêneca, o moço desafeto de Messalina,
“quem não souber morrer bem, terá vivido mal”.
Aliás,
a dona Vida, sua irmã, ao contrário, vivia em regalos, quase uma parteira,
celebrada e lembrada em festejos, desejada e aplaudida por todos em sopros de
velinhas e de línguas de sogra, estampada em camisetas de feira e panos de
prato. Sucesso de público e de crítica – mais desta, pois criticar a vida
alheia é quase um exercício, sabido que a língua é um músculo.
A
pobre dona Morte, não negava, colhia invejas da irmã. Com os pés calejados de
tanto acompanhar despojos, sem qualidade de vida ou autoestima, vista com temor
e desconfiança, a Morte naquele dia rebelou-se. Plantou o pé e bradou ao
infinito: “Nem morta!” E nós sabemos que juramento de morte sempre foi coisa
que deu certo – ou muito errado – por aqui.
O
fato é que durante esse tempo o sofrimento do mundo aumentou. Ora, a
imortalidade é um inferno! Foi quando ela percebeu que, mesmo contra a sua
vontade, sua presença inda seria sentida por todos. Pessoas sofriam a perda de
amores, de amigos, de afetos, das horas e de outros bem-quereres na distração
eterna de todos os dias. Sim, ela seria o que há de mais presente e definitivo
na rotina mundana. Pôs-se a sentir na carne a dor mortal dos corações feridos a
suspirar diante de porta-retratos, de reflexos em espelhos, do convite para o
café que não chegou, na audição daquela música da juventude, no ecoar das
gargalhadas daqueles filhos, agora adultos, que não moram mais ali.
Perder
é a morte em prestações. A Vida, chama breve, uma sala de estar das tintas
pálidas da Morte, servindo-lhe aos poucos – às vezes, aos montes.
O
que fica é a dor. E a dor que não passa nunca se chama saudade, e como
sussurrou em seu ouvido o cronista, “é na morte onde ela mora”!
Foi
quando a Morte despertou e se viu, em essência, tão igual a todos os mortais,
no vagar aprendiz do cortejo a caminho da solidão.
Publicada originalmente em Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019),
de Raymundo Netto (para adquirir o livro, WhatsApp da editora: 85 99183.8515)
"E a dor que nao passa nunca se chama saudade..."
ResponderExcluirMais uma crônica que nos co dia à reflexão sobre o sentido de vida e finitude.
Grato pela leitura, amiga Malvinier.
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