sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

"Pílulas, Placebos & Emplastros", de Pedro Salgueiro para O POVO

 


Nesses tempos terríveis, onde a ignorância campeia e se mostra orgulhosamente vaidosa, quando a burrice se espraia pelas redes sociais e à boca miúda, como se dizia antigamente, e a depressão parece ser o porto mais provável (mesmo inevitável), só as boas leituras nos salvam, acredita estupidamente, impunemente... o escrivão Bartleby.

Tenho espalhado livros e mais livros pelos diversos cantos da casa como se fossem caixas de remédios para todos os males, brota uma tristeza pego um volume de poesia, mesmo que seja das mais fortes, que fatalmente me livrará de outros tantos comprimidos; uma contrariedade no trabalho, dois contos da prosa de Guimarães Rosa me jogam nas veredas da lucidez; notícias ruins como doenças de parentes e conhecidos, tasco quatro parágrafos de Machado e duas conversas com Quincas Borba me recobram (pasmem!) a paz.

Mas mesmo com esses santos remédios encadernados e poeirentos, ainda em papel, tenho tido infinitos problemas, a ansiedade crescente me impele a pular de livro pra livros com uma rapidez estúpida, com uma incrível fúria para encontrar o antibiótico mais eficiente, numa insana busca que se torna por si mesmo mais importante que o resultado final; vou às cegas à busca do placebo ideal pra minha dor de cabeça imaginária, para tentar em vão estancar a fúria das águas que são todas (ou quase) do espírito: olho ao redor e se empilham volumes com marcadores a denunciar suas leituras fraturadas, interrompidas...

Na minha quixotesca tarefa de escapar do caos exterior criei, sem querer (ou inconscientemente desejando), um caos interior insolúvel: atravesso madrugadas tentando concluir leituras espaçadas, pedaços de livros que se confundem, personagem de épocas e territórios diferentes que impunemente interagem na minha loucura, Lituma desce dos Andes e vem pleitear uma operação de urgência, ainda exige liminar: a inútil organização de tarefas se misturam com os tenebrosos noticiários das tragédias tão repetidas e reanunciadas que ecoam de tempos imemoriais: o desastre serrano de décadas atrás (ou D’antes, doutras tragédias que de tão repetidas viram comédias) se mistura com as enchentes da semana passada, a cara de gravidade de repórteres, comentaristas e políticos se misturam com os choros e caras de espanto das novas vítimas: a repórter embarga a voz ao anunciar que quatro corpos da mesma família foram encontrados, três abraçados sob o barro.

A contabilidade material, física mesmo, dessas últimas tragédias, é difícil de contabilizar, mas a enumeração de nossos males mentais decorrentes delas serão infinitamente mais impossíveis de se perceber, curar, sanar, remediar momentaneamente que sejam: e tome remédios, palavras, lágrimas, rezas e ódios... Então tento policarpamente curar tudo isso com inúteis livretes, que se amontoam inacabados, poeirentos, a entupir quase o quarto, a casa inteira, impedindo o fechamento de portas e janelas.    

Como se fosse possível fugir de nós através dos outros: procuro na prateleira um vidro ainda fechado de Pílulas do Mattos... e outro, já bastante usado, do Emplastro Brás Cubas!




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