segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

"Mário Gomes morreu?", por João Soares Neto


“E andando no sol que cega,/ sentir com triste espanto/como toda a vida e o seu tormento/que corre continuamente é uma muralha/que em seu topo tem cacos pontiagudos de garrafa”. Eugenio Montale (1896-1981), poeta italiano.
(Paulo) Mário (Ferreira) Gomes morreu no último dia do ano.  Foram juntos, ele e o ano. Quem não conheceu Mário Gomes não é bem fortalezense. Tampouco sabe da importância do desvario alegórico dessa figura singular, abusada, que sabia ser poeta e só falava com quem elegia. Não portava identidade e fizera do centro antigo o seu habitat. A sua obra é, inclusive, objeto de tese de mestrado da jornalista Ethel de Paula.
Paletó sobre camisas, calças amarfanhadas e sapatos rotos por andanças. Seria ele exemplar perdido da geração “beat”, como entendeu o e escritor Márcio Catunda?  Ou pós-moderno “Carlitos”, o personagem de Chaplin? Creio que ele viveu como quis e se sabia admirável em sua franciscana, mas airosa figura, mesmo que a dorsal, aos 67 anos, não mais o deixasse ereto.
O fato é que o G-1, imagine, o site da rede Globo, estampou, quase na hora, a sua morte: “Ceará -... Mário Gomes era conhecido como poeta descomunal e se tornou popular como transeunte da Praça do Ferreira e no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.”
A exigente Folha de São Paulo, edição desta terça, 06, página C4, registrou: “Mário Ferreira Gomes (1947-2014) - Um poeta das ruas de Fortaleza”, em negrito mesmo, escrito por Andressa Taffarel. Reproduzo duas colunas, mas foram três: “Vez ou outra, Mário Gomes convidava as pessoas para irem a seu escritório na praça do Ferreira, em Fortaleza. Se lhe perguntassem qual era o endereço exato, responderia sem subterfúgios: ‘Na praça’ – às vezes a frase vinha acompanhada de alguma palavra um tanto grosseira, não publicável aqui. O ‘escritório’ nada mais era que um dos bancos do espaço público onde Mário reunia poetas como ele, amigos e interessados em ouvir discussões sobre literatura. Além de sempre falar o que lhe vinha à cabeça, era conhecido por seu desapego aos bens materiais. Até tinha casa em um bairro da capital cearense, mas preferia viver como um andarilho pelo centro, normalmente de paletó e com uma bebida e um charuto ou cigarro nas mãos. Não admitia que lhe dessem esmolas. ‘Não sou pedinte, sou artista’, dizia. Ajuda só aceitava de pessoas próximas...”
Leitor ávido de jornais que não comprava, sabia dos acontecimentos culturais. Era comum vê-lo no calçadão que medeia a Igreja do Rosário e o Palácio da Luz, quando a Academia Cearense de Letras realizava solenidades. Ficava ao largo, como a balbuciar alguns dos seus muitos poemas. Um deles: “Beijei a boca da noite/ e engoli milhões de estrelas./ Fiquei iluminado./Bebi toda a água do oceano./Devorei as florestas/ A humanidade ajoelhou-se a meus pés,/pensando que era juízo final./Apertei com as mãos, a terra/ Derretendo-a/As aves em sua totalidade/Voaram para o além/Os animais caíram do abismo espacial. /Dei uma gargalhada cínica/E fui descansar na primeira nuvem/Em que o sol me olhava/ assustadoramente./ Fui dormir o sono da eternidade/ E me acordei mil anos depois/Por trás do universo.”
São tantos seus versos, livros e idas e retornos ataviados por caronas ao Rio e a Salvador. Por fim, Mário quedou-se e se apropriou da praça e do Dragão do Mar. Ia à rua Pereira Filgueiras e à Rua Dom Joaquim, em raros sábados. No dia 31, pela manhã, o artista plástico Tota me visita e fala do estado grave do Mário. Disse que logo passaria pelo IJF. Em seguida, o Raymundo Netto liga e diz: “O Mário morreu”.  Era começo da tarde, sol zenital. Chego ao IJF. Encontrei-o já no necrotério gradeado. O cadeado foi aberto por pachorrento e gentil servidor e a corrente tintilou como sino.  O Mário estava sobre uma maca, lado direito, envolto em panos brancos e limpos, atados por fitas gomadas. Literalmente, empacotado. Logo ele que amava a liberdade.
Desci ao Serviço Social e encontrei o escritor Raymundo Netto e o artista plástico Tota. Faltava a carteira de identidade para os seus dados oficiais. Exigência legal, mas o capitão da segurança amoleceu quando o Tota mostrou cartolina com fotos do último aniversário do ex-vivo e, um livro com a sua foto na capa.  Houve surpresa, a irmã chega e mostra o seu plano funerário. Mário não precisava da ajuda de ninguém. Altivo, até depois da morte.
Lembrei-me que o via por aí, quase encurvado, como um arco sem flecha , entre profundas pitadas de cigarro, com passadas em zig-zag a desobedecer a Lei da Gravidade. Pois  foi  justo ela, a que chama todos os corpos para o centro da Terra, que o fez cair e passar dois dias no IJF, entre resmungos, desaforo aos médicos e aos enfermeiros e o zelo do amigo Tota.
Manhã do primeiro dia de 2015. Mário de barba escanhoada, paletó com gravata, deitado para sempre no pátio da Biblioteca Dolor Barreira. Ou voltará daqui a 1.000 anos? Algumas coroas, irmã, sobrinha e pouca gente. Alguns falaram, dizendo das artes e travessuras do silente. Lágrimas, risos e, por fim, um Pai Nosso. Ele já descansava na primeira nuvem branca de um céu azul e, me pareceu, que cinzas do seu cigarro caiam sobre o passeio.

(publicado em O Estado, 09 de janeiro de 2015)

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