quarta-feira, 25 de setembro de 2013

"Ninguém me perguntou, mas por falar em d. Lúcia Dummar...", crônica de Raymundo Netto para O POVO (25.9)


“Às margens da lagoa que lúcia e lenta soluça, a avarandada rotina da casa grande do Sítio Castelo era perturbada pela chegada de dois homens que contendiam entusiasmados: Demócrito Rocha e Antônio Garrido.”
Assim iniciava a minha crônica “Maracajá, já!”, publicada em O POVO, em 6 de novembro de 2009. Há pouco conhecera pessoalmente a d. Lúcia Dummar, em sua casa. No texto, então, supunha seu pai, jornalista que fundou O POVO, chegar naquela varanda, à hora quente do almoço, trazendo com ele – por não gostar de almoçar sozinho – o poeta Antônio Garrido, sendo que, na realidade, Garrido era o pseudônimo com que Demócrito assinava seus poemas. O poeta, “em mangas de camisa”, tentava convencer Demócrito, de paletó, a trazer de volta a revista literária “Maracajá” que, ao final da década de 1920, divulgava e defendia o modernismo feito no Ceará.
No casarão, ouvindo d. Lúcia, sentia-me a voltar no tempo, mas não no meu, e sim no de Demócrito, de Lúcia e de tantos outros personagens tão reais e palpáveis na voz dela. D. Lúcia me apresentava a um papagaio, companheiro de estima do filho, também Demócrito, e a um cabritinho, o Biel, que tentava surrupiar uns pastéis a mim oferecidos. Ela havia lido o meu “Cadeiras na Calçada”, e confirmava as suas histórias, dizia que poderia ter vivido naquele livro. Depois, levou-me para conhecer as aves do quintal, o seu memorial d’O POVO, da PRE-9, e a biblioteca onde guardava livros doados por amigos. Orgulhava-se: “Meu filho, eu gosto muito de ler. Leio todos os dias.”
Almocei na casa essa única vez – a profa. Adísia me dizendo que teria que me servir, no mínimo, três vezes – e também provei os doces de d. Lúcia. Prometi voltar, e o fiz depois de muito tempo. Nesses intervalos de ausência, vez ou outra, ela me ligava para falar da última crônica lida. Que as cortava do jornal e as colecionava: “Você está fazendo uma carreira muito bonita”, dizia gentilmente.
Cheguei a ir na sua casa outras vezes, nunca pensando que seria a última, e ficando pouco devido ao meu tempo de sem tempo de sempre, embora ela tivesse muito o que contar, não só do passado, mas do presente também. Cheia de opiniões, sabendo de minhas atuais funções, aconselhava-me com a segurança de quem já tinha vivido muito, mas não tudo!
Em maio deste ano, na série de crônicas de aniversário d’O POVO, escrevi uma dedicada à “Senhora da Mansão Castelo”: “Era 6 de maio de 1917. De repente, a fisgada e o entreolhar: ‘Acho que é agora!’ E foi. De sete meses nascia a caçula. Sem aviso, sem banheirinha, sem fraldas ou sapatinhos. Seria Maria da Glória, como a vó, dependesse de Demócrito, mas Creuza quem decidiu: Maria Lúcia! Sim, Lúcia, a ‘iluminada’, ainda nos braços da mãe. Nada tinha, mas nada lhe faltaria. Logo os amigos, parentes e vizinhos fizeram-lhe o enxoval.”
E Lúcia era mesmo viva, falante e determinada. Com seu carisma, chegou a ser candidata à Rainha dos Estudantes Cearenses, e por eles apoiada em campanhas festivas, desistindo, porém, de sua candidatura pela exigência do pai. Até o poeta Antônio Sales, grande admirador da jovem Lúcia, escreveu-lhe um dia: “Mas a flor, seja qual for, /Há de sentir-se humilhada,/ Ficar de inveja ralada/ De não ser Lúcia e sim flor.”
De fato, penso que d. Lúcia é uma daquelas pessoas que não deveriam morrer, pois ela já não se cabia de tantas histórias, experiências, vivências e realizações, que lhe faziam a vida não ser mais tão e somente sua, e digo isso com toda a convicção de quem compreende de pertencimento alheio às coisas imateriais. Assim, como o jornal O POVO, hoje, independentemente de quem o comanda e dos rumos de sua direção, é um patrimônio cearense, uma testemunha viva de nosso existir temporal. Ele é pelo que já foi e será, coisa que não se compra nem se inventa de um dia para outro.
Lamentei a passagem de d. Lúcia, todavia, lamento ainda mais pelo que não poderemos esperar e ter dela: o seu tempo! Fica na memória, selado, esse nosso grande encontro de vidas “por entre coqueiros e plantas emplacadas delicadamente no jardim colorido do vermelho das araras e do canto dos sabiás. As pétalas de murta, estouvadas no chão, [que] sacolejavam com o vento de novembro deixando o varandado para trás. As lembranças persentiam por entre pesadas talheres que tilintavam sob a inicial bordada ao guardanapo e com o vozeado alegre de crianças do passado [Albanisa, Carmen Lúcia, Lúcia Helena, Lúcia Maria, Dummar Filho] à comprida mesa branca de almoço. Estalando as colheres de cremosos doces de leite, a memória perfumosa do tempo emergia viva como NOTAS do velho rio, artéria aberta, que na pena do poeta vai morrendo e resistindo... morrendo e resistindo... resistindo sempre... como as rochas.”


2 comentários:

  1. Querido amigo, sua crônica é belíssima! Parabéns!

    Seu texto fez-me lembrar que há vinte anos rascunhei algo, em uma das minhas muitas crises de saudade, cujo tema era “O lado de cá e o lado de lá da lagoa”.

    O lado de lá da lagoa pertencia à “Lúcia Dummar” (expressão do povo de Messejana).

    Vou rever os meus bosquejos e, encontrando o prefalado escrito, se a coragem deixar, enviá-lo-ei a você.

    Abraços.

    Lucneide Souto

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  2. Lucineide, agradeço a leitura e aguardo seu retorno com o texto. Forte abraço.

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