sexta-feira, 27 de setembro de 2013

"O Grande Polegar", de Audifax Rios para O POVO (27.9)

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Os primitivos retornam vez por outra, ora repaginados com o nome de ingênuos, ora com polimentos de civilização, então naifes; vira e mexe e estão emoldurados nos escritórios, nos saguões das repartições públicas, proliferam nas galerias de arte... enfim, referências de uma tendência reciclada, posta em moda. No Clube do Bode a discussão sabatina em torno do mito pirambulento que fez escola se arrasta desde que um ex-marchand (xereta da escolinha risonha e franca que encomendou manadas e manadas dos bichinhos fantasmagóricos para aboiá-los até os currais sulistas, as boníficas galerias da desvairada pauliceia), escancarou com todas as letras e todas as cores sua participação na divulgação da obra do artista.
O próprio pai de chiqueiro-mor da citada agremiação etílico-cultural se inicia na matizada e traiçoeira arte de leiloar pensamentos emoldurados e atiça o fogo da antiga polêmica em torno das origens escusas dos pesadelos ancestrais do Chico da Silva postos em tela através dos seus discípulos, quando não, dele próprio. E se achegaram mais outros intelectuais, afastados de suas lidas sensaborosas, com tempo de sobra para dedicarem-se a um gratificante e rendoso lazer, cheios de si e de sapiência. Como o verniz que o Chico sequer punha nas telas, derramam potes e potes de conceituações em torno da arte do Pirambu, maledicências sobre a vida desregrada do artista, colocando mais em evidência as incrustações de ouro de sua arcada dentária e os dólares supostamente esbanjados nos lupanares do Farol que a própria essência daquela manifestação coletiva; os impulsos e a explosão de imagens passadas pela cabeça do consertador de guarda-chuvas e seus auxiliares imediatos.
Jean Pierre Chabloz, sim, percebeu naquele instrumento humano não uma mina de dinheiro, porém, a sangria de uma veia popular prenhe de pigmentos alucinantes derramados nas telas como para conter a força mental daquele grupo entusiasmado. Claro que quando Chabloz pôs a boca no mundo choveu de aproveitadores, como acontecera tempos atrás com a arte africana na Europa. E o cobiçado prêmio da Bienal de Veneza só veio acalorar os ânimos de colecionadores, museus, novos ricos e até camelôs da Beira Mar. A febre foi braba, intensa e duradoura. Chico da Silva mais parecia um bicho saído de seu próprio cavalete, fruto de seus pesadelos ancestrais. Tipo aberração de circo. Visitado, paparicado, comprado e falsificado. Como falou Garcia Marquez, era o único que não participava do próprio evento. Não percebia a dimensão do valor, da fama e nem da consistência do próprio trabalho. E se deixou levar pelas águas passageiras da glória e a louvação dos oportunistas.
Agora muito se fala em Chico da Silva, uma reabilitação, uma revisão depois da chama ter abrandado? Apenas uma reaquecida num mercado em descrédito? Desenfurnaram o Babá, um dos sobreviventes que foi buscar, no fundo do baú, maresiados álbuns com referências dos quadros mais solicitados, portfólio da bicharada, espécie de caderno de caligrafia pontilhado para que, no futuro, se retomassem roteiros dantes palmilhados com sucesso. Desta feita dragões e besouros sairiam de tocas e locas para, de novo, alegrar paredes nuas numa chuva de cores pirambulescas, um pastiche da arte do velho Chico que em vida já era exaustivamente parodiado. Se bem que com sua permissão, seu aval, seu timbre, seu lacre.
A peste dasilviana foi tão cruel e descontrolada, lá pelos anos setenta, que o autor não se deu conta da demanda desmedida. Acercou-se de parentes e aderentes e passou a reger uma orquestra desafinada que, no entanto, encantava a galera, bravo! Mal comparando, agia como os mestres renascentistas em relação aos discípulos amados. Por aqui, Chica, Babá e muitos outros; um cuidando de garras, outros de olhos... asas e rabos multicores; arco-íris e matagais exuberantes. E enquanto o cão esfregava um olho, Chico da Silva despejava o jamegão ao lado do selo de autenticidade: as impressões digitais, um borrão grosseiro, marca de um polegar de calosas mãos de trabalhador.

Pelo visto teremos revisitada, com todo alarde, a arte do Pirambu. Muito bom. Aciona o mercado, e, melhor, põe aos olhos da nova geração a maracutaia que se urdiu há meio século naquela beira de praia. Com sabor de guelra e cheiro de maresia. Vamos rever o que princesas e estadistas, curiosos e pesquisadores, vieram tomar tenência nestes areais excluídos do mapa, um favelão de pescadores ilustrados, lodo de onde se colheu esta flor: o primitivismo da equipe do Chico. Que, a exemplo dos anônimos grafiteiros, começou pintando nos muros da sua aldeia. Para ser universal logo adiante. E sempre.

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