quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

"Segredos", Pedro Salgueiro para O POVO (05.12)



“O que se diz é que o desejo atual das pessoas de se mostrar, de se exibir, de que sua vida tenha testemunhas (o exemplo citado é o das pessoas que penduram sua vida na internet), talvez seja o resultado de uma nostalgia da velha ideia de que Deus era testemunha de tudo que fazíamos, de nossa vida inteira.”
(Javier Marías, entrevista aO GLOBO)

Numa das poucas pistas que deu para o fato de ter deixado de escrever (ou pelo menos de publicar), Raduan Nassar disse, em rara declaração, que o escritor é como aquele menino que os pais colocam na sala diante das visitas para se mostrar: recitar versos, cantar de cor uma canção, fazer “de cabeça” operações matemáticas, tocar algum instrumento musical ou simplesmente dizer gaiatices.
Sempre me intrigou o motivo que leva alguém a transpor para o papel (hoje à tela) seus segredos mais bem guardados, suas taras mais secretas, seus instintos menos públicos. Deixa-me de cabelo arrepiado (o pouco que tenho) a perspectiva de que um estranho me desvende atrás do novelo de uma frase. Que do emaranhado de palavras brote, para um atento leitor, o monstro que sou (somos todos nós!?) na intimidade do coração.
Assusta-me a necessidade desenfreada que as pessoas têm (temos) de se expor, de se “amostrar”, de se desvendar inteira para essa multidão de estranhos que as (nos) rodeiam. E essa carência de reconhecimento, de não serem anônimas no mundo, (ou sempre foi assim, hoje apenas é mais visível?) se tornou doentia.
O exibicionismo impera na internet e fora dela. Facilmente sabemos quase tudo da vida de qualquer um: não só de seu corpo, tatuagens e manchas, mas até nuanças emocionais. Fotos e confissões disputam espaços nos blogs e sites. Fala-se publicamente de finanças e sexo, de trabalho e viagens, de projetos e sonhos. Nós — sem que nenhum governo tirano, nenhum sistema político sofisticado, nos obrigue — nos colocamos numa bandeja prontos para ser servidos.
Quisesse saber de segredos, antes: necessitava o marido suspeitoso contratar detetive para seguir a esposa (ou o contrário, claro), a empresa enviar funcionário à vizinhança do futuro empregado. Serviços secretos, de espionagem doméstica ou empresarial, pública ou privada, proliferavam em várias escalas da sociedade.
Hoje não, bastam alguns minutos na frente do computador e já sabemos o signo, as preferências culinárias, a ideologia política ou religiosa, as taras e fetiches e até (pasmem!) projetos de vidas e sonhos de qualquer pessoa, seja ela uma simples doméstica ou um pedante professor universitário.
Claro, não colocamos todas as verdades, pois muitas vezes nem mesmo nós as sabemos. Deixamos apenas pistas. Fotos e pegadas que jamais (me fala um amigo fanático pela “grande rede”) poderão ser apagadas.
Se formos baixos, ficamos altos; se pobre, ricos; se desinformados, copiamos citações no Google.
Criamos nossos próprios “fakes”. E saímos (pior, nem mais saímos) por aí completa ou parcialmente Frankensteins.
Resta-nos somente, na nossa incontrolável ânsia de exposição, saber quem vai nos inventariar no futuro.
Quem vai comer esse prato quente que ora servimos a todos?

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