sábado, 29 de dezembro de 2012

"Os Acangapebas", por Ana Lúcia Santana, para o Info Escola




http://www.infoescola.com/livros/os-acangapebas/

Os contos de Raymundo Netto trazem notícias da vida urbana e do sertão. E revelam que algumas preocupações e inquietações povoam tanto uma esfera quanto a outra. A narrativa intitulada “Intermezzo”, “Entreato” em Português, demarca exatamente um espaço entre dois segmentos desta obra.

O primeiro é marcado pela presença constante da solidão e da morte nas grandes cidades. Também estão presentes as buscas da própria identidade ou do outro, ou de ambos. O segundo é pontuado principalmente pela temática sertaneja, embora nem sempre as histórias sejam ambientadas na região agreste. Elas são pontuadas especialmente pelas lembranças e memórias de outros tempos, ou de tempo nenhum.

Na verdade, estes temas perpassam tanto um bloco de contos quanto o outro; a diferença reside na intensidade que o autor confere a eles na parte inicial e na que se segue ao “Intermezzo”. O primeiro ato é povoado por personagens que voluntária ou involuntariamente mergulham na mais completa reclusão. Para sempre?

É o caso, por exemplo, de Nazareno, do conto “Gato”, que se distancia dos familiares e desenvolve uma relação simbiótica com seu animal de estimação. No mesmo sentido Dona Carmosina, em “O Mistério do Sótão”, incapaz de gerar vida, reserva seu afeto a um ser inanimado, enquanto aos seres vivos destina um profundo sentimento de avareza e de amargura, em um impressionante contraste psicológico.

Por outro lado alguns destes personagens são deliberadamente conduzidos ao ostracismo pela doentia hipocrisia. Convenções sociais irracionais atuam como deuses cruéis e caprichosos dispostos a determinar o destino de suas criaturas. No conto “Condomínio” fica bem clara esta intenção quando seus moradores acusam Juca de invasão da privacidade alheia por permanecer nu em seu apartamento. Até então o protagonista ignorava ser alvo da atenção de seus vizinhos; envergonhado e ciente dos olhares dos demais, ele transforma sua aparência em uma constante obsessão e inverte o jogo; agora é Juca quem desnuda os condôminos, pois passa a observar atentamente cada um de seus passos, rompendo os limites da vida privada. Levado à cena principal pela vizinhança, é logo impelido ao abismo da solidão.

Nesse cenário também se insere o Coronel Oswaldo; de homem respeitado e tradicional, conselheiro matrimonial, o idoso se transforma, graças a uma prótese peniana, em ávido Don Juan. Por conta de uma fantasia inofensiva, é logo convertido em alvo de fofocas e brincadeiras ofensivas. Como Juca, torna-se vítima da solidão da popularidade. Normalmente este mal tem um trágico desfecho. Estes contos mais sarcásticos lembram muito a fina ironia de Machado de Assis.

Alguns temas bíblicos também protagonizam os contos de Raymundo, especialmente o do sacrifício. A condição feminina é exposta em histórias como “Cafarnaum” e “Redenção”: A primeira retrata uma cidade típica do mundo moderno, pela qual transitam seres incapazes de se redimir diante da dor, exatamente como na terra natal do apóstolo Simão Pedro, que se recusa a acolher o Evangelho e por esta razão é pretensamente condenada à destruição.

Por instantes seus habitantes parecem se mobilizar ao testemunhar o assassinato de uma bela jovem, sacrificada por sucumbir ante a vaidade. Mas logo se revelam autômatos anestesiados por falsos dramas exibidos na TV. Ilusão e realidade se chocam em suas mentes insensíveis.

Em “Redenção” o julgamento social incrimina previamente uma jovem esposa e assim destrói um casamento, amaldiçoa uma família e esta maldição se perpetua, culminando no sacrifício de outra figura feminina, a imaculada e apaixonada segunda mulher de Gedeão.

O ritual sacrificial atinge também os personagens masculinos. Um dos contos mais impressionantes é “A Ventura de um Morto”. Nesta história o autor atinge o ápice da crítica social. Em uma sociedade na qual tudo está à venda, desde cabelos, órgãos humanos, virgindade e a própria alma, deveríamos nos surpreender com o desenrolar desta história? Ou com o que é retratado em “Filho do Cão”? Ambos são pontuados por uma atmosfera surreal, como a que marca a obra de Kafka.

No primeiro, um executivo passa mal em uma via pública e cai aparentemente morto na calçada. Em momento algum é socorrido por alguém. Como se não valesse absolutamente nada, é roubado, despojado de suas roupas, chutado, jogado de um lado a outro, atropelado, privado dos próprios órgãos. Após uma odisséia surreal, é santificado e praticamente crucificado, em uma alusão ao sacrifício de Jesus.

No conto “Filho do Cão” o protagonista também percorre uma longa jornada, porém no sentido inverso. Aqui, desprovido de todo e qualquer recurso, cansado de ser humilhado, ele vende sua alma ao Diabo. A partir deste momento passa a ser reverenciado, glorificado, e se dá conta de que estas pessoas também são servas da entidade.

O traço psicológico de Clarice Lispector, presente em suas densas e complexas personagens femininas, parece ser uma das influências do autor na composição de suas protagonistas, tais como Cícera, de “Álbum de Fotografias”, que se consome na solitária cela do matrimônio; a avó anônima de “Domingo”, desprovida de identidade, esgotada pelo ofício de servir a família; a garota de “A Mulher de Antes”, na sua jornada cíclica em busca da identidade; e a solitária de “Memorialva”, que de tão reclusa entra em simbiose completa com o ambiente opressivo no qual se encerra.

O segundo ato apresenta histórias mais longas, sinalizadas por uma profunda melancolia e pela inexorável passagem do tempo. São contos mais poéticos e líricos, porém marcados a ferro pelas agruras do sertão ou da vida. Como “O Circo”, no qual o palhaço Cambalhota relembra momentos traumáticos do passado, quando volta a ser o menino Bené. A máscara de alegria cede espaço à profunda desilusão da infância.

Em histórias como “A Bodega” e “Cadeiras na Calçada”, a passagem do tempo impõe transformações irreversíveis, contrapondo lembranças de um passado tradicional, conservador, ao nascimento de uma era movida pelo progresso incessante e voraz. Naturalmente nem sempre estas recordações trazem momentos felizes.

O autor não se filia à categoria dos que fazem a apologia de um passado nostálgico. A trajetória de seus personagens é demarcada por vicissitudes tanto no presente quanto no pretérito. Mesmo as narrativas mais belas e repletas de poesia, com toques de Guimarães Rosa e Drummond, como “Luzeiros”, “Ode ao Amor e à Morte” e “O Tio Dançarino”, não deixam dúvidas: a tristeza, a dor e a morte estão presentes, anunciadas na epígrafe inicial, assinada por Dante: “Vós que entrais, deixai de fora toda esperança”.

Realmente sentimos falta de luz e confiança em Os Acangapebas. Aliás, o conto que dá título a este livro é um dos que mais carecem de luminosidade, embora os raios de sol sejam inclementes no sertão. Às vezes a leitura se torna sufocante e até mesmo deprimente. Algumas histórias são realmente devastadoras, como “Gêmeas”, a “Mulher dos Gatos” e “Trégua”, nas quais predominam o horror típico de autores como Poe e Kafka.

Com certeza a realidade está aí presente; não há exagero algum, mas o próprio autor admite, conscientemente ou não, que falta alguma perspectiva positiva a sua obra quando na epígrafe final Goethe clama: “Mais luz!” E com certeza o leitor assina embaixo.

Sobre o Autor:

Raymundo Netto nasceu em Fortaleza, no Ceará, em 29 de junho de 1967. Ele se formou em Fisioterapia, mas logo optou pelo universo artístico. Iniciou sua carreira no cinema de animação e como produtor de “Hogro: uma homenagem aos 100 anos de cinema”. Migrou para o mundo das HQ, passou pela Publicidade, pelo campo da produção gráfica, militou na Educação Ambiental até definitivamente se estabelecer na esfera literária.

Ele ingressou nesta seara em 2005 com o lançamento de seu primeiro livro, Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, vencedor do I Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. Desde então apresenta uma vasta atuação no universo da Literatura. Em 2009 fundou o blog AlmanaCULTURA, no qual divulga eventos, projetos culturais e literários: http://raymundo-netto.blogspot.com.br/

Seu livro Os Acangapebas conquistou o II Edital de Literatura da Secretaria de Cultura de Fortaleza em 2007 e o Prêmio Osmundo Pontes da Academia Cearense de Letras no ano de 2011. Raymundo foi membro do Conselho Curador da IX Bienal Internacional do Livro do Ceará em 2010 e hoje é editor adjunto das Edições Demócrito Rocha.

Fonte:
Raymundo Netto. Os Acangapebas. Editora Fundo de Quintal, Fortaleza, 2012, 147 pp.


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