domingo, 26 de agosto de 2012

"Os Acangapebas", por Rinaldo de Fernandes



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O livro de contos Os acangapebas (Expressão Gráfica e Editora, 2012), de Raymundo Netto, obteve o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura, da Academia Cearense de Letras. O autor é conhecido cronista do jornal O POVO, de Fortaleza, e atualmente é editor adjunto das Edições Demócrito Rocha.

As narrativas do livro são compactas, breves, não passando de página e meia, em sua grande maioria. O sugestivo “Luzeiros”, que abre o volume, tem como protagonista um ex-pescador que produz “a canivetes” pequenas jangadas para vender aos turistas. O filho Francisco, que também se volta para o mar, representa a continuidade da tradição – ou a permanência da miséria dos que, nas praias cearenses, sobrevivem da pesca.

Carmosina, de “O mistério do sótão”, é uma personagem ambígua, enigmática. Ao mesmo tempo que é vista pelos feirantes como uma mulher áspera e “de fibra”, com seus “ataques matinais”, é também solitária, com uma profunda carência afetiva que a faz ter apego por uma boneca antiga, “de cabelos desgrenhados”, à qual se abraça, dizendo coisas do tipo: “– Oh, meu bebê, o que andou fazendo hoje, hein? Que saudade. E eu estava tão sozinha...”. Dramática personagem.

Apagada e infeliz no casamento, Cícera, de “Álbum de fotografias”, é uma personagem muito bem elaborada. Expressa a vida de mulheres que apostam e se anulam nos relacionamentos, que não crescem socialmente, inviabilizadas e/ou imobilizadas pela falta de liberdade. “Álbum de fotografias” é, nessa perspectiva, um texto exato, agudo. 

“Gato”, além do tema da solidão, a de um velho que tem como único e verdadeiro amigo um gato, joga com os interesses humanos. No caso, com a avidez dos que, decepcionados, esperavam obter a herança deixada pelo velho.

“A ventura de um morto”, em seu primeiro movimento, lembra “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan – o indivíduo que, na rua, agoniza e recebe a indiferença dos transeuntes ou tem seus objetos surrupiados por aqueles que supostamente o “acolhem”. Mas no conto de Raymundo Netto a impiedade parece se intensificar. Diz o narrador: “Uma senhora, passando na calçada, o viu estirado, empastado, sujo e, aproveitando o sinal, o arrastou até uma viela próxima. Chegando lá, examinou à sua volta. Não viu ninguém. Arrancou-lhe um olho, correndo com um sorriso maroto nos lábios: uma córnea!”.

“Os pregos” retrata a rotina, as relações de trabalho desestimulantes e desfiguradoras do homem no mundo moderno.

No kafkiano “Trégua”, a protagonista não vira barata, mas é ameaçada o tempo todo pelos insetos na quitinete obscura onde passa a viver. Conto de atmosfera angustiante.

“Tragédia” tem um velho viúvo como protagonista. O viúvo tem grande apreço por sua estante de livros, de onde, certo dia, despenca um volume intrigante. Conto sobre solidão e loucura.
“Os acangapebas”, que dá título ao livro, é um conto triste, trágico. Uma nota, no pórtico, informa que a palavra “acangapeba” significa “cabeça-chata”. Assim, o conto metaforiza a migração cearense, nordestina. A morte da criança, ao final, ritualiza as perdas que, historicamente, os deslocamentos acarretam. Remete, por exemplo, à situação vivida por Bentinho e sua família em O quinze, de Raquel de Queiroz.

Em “A bodega” o contista flerta com o cronista (para não dizer com o sociólogo). Conto que traz diálogos rápidos e reproduz as falas e costumes da gente simples de um bairro de Fortaleza em contato com o acolhedor e carismático bodegueiro Toinho. Um retrato do modo de ser e viver de vários tipos da capital cearense, flagrados, com sensibilidade e certo humor, no universo de uma verdadeira instituição da cidade: a bodega. 
           
E seguem assim os contos de Raymundo Netto, que tem como marca estilística importante a invenção, aqui e ali, de neologismos, a exemplo de “saudadejavam”, “tempotodotodotempo”, “calmacalmacalma”, etc. Neologismos que surtem efeito positivo, enriquecem a frase.

O conto de Raymundo Netto, reitero, é compacto, sugestivo. Conto urbano, que flagra uma série de situações típicas do mundo atual. E que, seguramente, coloca o autor entre os bons contistas nordestinos contemporâneos. 

Rinaldo de Fernandes, para o Blog da Beleza (http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/)

Escritor e crítico. Doutor em Letras pela UNICAMP e professor de Literatura da Universidade Federal da Paraíba. Organizador do livro O Clarim e a Oração: cem anos de Os Sertões (Geração Editorial, 2002). Como pesquisador, fez os textos da antologia Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, organizado por José Nêumanne Pinto (Geração Editorial, 2001). Autor de diversos livros de contos, como O Caçador (1997), O Perfume de Roberta (2010), Rita no Pomar (2009) e O Professor de Piano (2011) – os dois últimos foram finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura. Organizador das antologias Contos Cruéis (Geração Editorial, 2006), Quartas Histórias (Garamond, 2006) e Capitu Mandou Flores (Geração Editorial, 2008). Escreve para os suplementos Rascunho (Curitiba) e Correio das Artes (João Pessoa).

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