segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

"A Dois", de Raymundo Netto para O POVO


Aquele casal se amava tanto, mas tanto, tanto, que um dia acordou pregado!

De primeiro, perante o espetaculoso incompreendido, o sobressalto. Depois, com pouco, a constatação bem-querida. Ele: “Agora eu tenho certeza, amor, de que você não me escapa!” E ela: “Hummm... e eu, que tenho você todinho para mim...” E num chamego quase autofágico o casal descobriu em seu mundo sem novidades matrimoniais o alvorecer de um inconcebível prazer de amar a si mesmo, a bolinação inesgotável, o compartilhar de seu próprio gozo, tão extraordinário quanto a descoberta da areia lunar.

Passados alguns meses de experimentos e satisfações transcendentais de fazer inveja a Kama Sutra, encontramos o mesmo casal trazendo no corpo as marcas da perversa convivência íntima: feridas, hematomas e cicatrizes nos braços, nas pernas, na alma.

Não havia absolutamente nada que eles gostassem de fazer juntos – e eles tinham, por anatomia, que fazê-lo exatamente assim, juntos – muito menos pensar. Sim, compartilhavam também os seus pensamentos. O certo é que não se toleravam mais. Para eles, o companheiro ou a companheira era de um tédio nauseante, de até desejar a morte: a do outro, e por efeito, a de si mesmo.

Mesmo em silêncio, em frente à TV, um zapeado incontrolável. À mesa, ela não suportava os maus hábitos dele e reclamava da comilança que a deixava cada vez mais gorda. Por outro lado, ela o fazia perder horas em shoppings na busca de acessórios ou nas tardes de sábado no salão, além de raspar-lhe as pernas. Gentilezas? Coisa do passado. Ele: “Vai primeiro, preguiçosa”. Ela: “Seu porco, e eu tenho que esperar a sua boa vontade para poder me lavar direito?”

Daí, uma manhã, ao se coçar enquanto acordava, ele percebeu-se livre da incômoda mulher, deitada do outro lado, despregada de seu corpo cativo. Imediatamente a despertou com a boa nova. Não demorou nada e, mesmo sem despedidas ou perguntas, ambos cruzaram a porta e seguiram a calçada, claro, por caminhos completamente opostos.

Durante anos eles perambularam pelas ruas de outras cidades, outros estados e países, viveram outras vidas, amaram e desamaram ao desfrute da liberdade outrora lhes negada. Curiosamente, vez ou outra cruzavam o mesmo itinerário. Nesses casos, quando possível, mudavam de calçada, davam meia-volta, embrenhavam-se à primeira porta aberta. E, quando inevitável, no máximo – às vezes nem isso –, um tchauzinho insosso com cara de “passa reto” ou “desgruda de mim”.

Um dia, sem data marcada, cansados de tanta permissividade e falta de rumo, voltaram a sua casa. Ambos estavam profundamente diferentes, e mesmo assim se reconheceram. Estavam cansados, mais velhos e mais leves. Fitaram-se demoradamente, como a compreender o papel daquela pessoa em sua vida. O choque das lembranças a dois de algo que não era amor, mas coisa muito melhor, os atravessou como o cheiro do vento que aquecia aquela mesma calçada. Sem palavras, entre risos e lágrimas, arriscaram tocar no rosto um do outro e caíram de lábios em um beijo indecente, apoteótico, jamais visto ou compreendido, rendidos para a vida em um perdão supremo e desnecessário, mais unidos do que nunca por um só coração.





 

5 comentários:

  1. Tanto grude. Arre! A dois só com separação de corpos. É que no amor pouco importa o coração que bate; importa mesmo o coração que toca... que toca o samba de uma nota só.

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  2. " ... o amor... tem que morrer pra germinar..."

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  3. Nada como o tempo para mostrar quem são as pessoas realmente.
    "Amor" palavra pequena e forte muito falada na boca de muitos , pouco expressa em atitudes. Com certeza as atitudes valem mais do que "palavras"....
    Parabéns, Raimundo!!! Gosto muito das suas publicações.

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