“Meu amor, não é o que você está pensando...”
Essa afirmação tão ridícula quanto a outra
de “nunca ter acontecido comigo antes” saiu da boca de um perplexo Aquiles
quando descoberto em flagrante.
Era alta madrugada. Odisseia acordou e deu
pela ausência do marido na cama. Estava ele num canto do quarto, olhar vidrado
na tela do celular, mordendo os beiços com apetite, o que ela constatou pela
luminância do aparelho em seu rosto.
Agora, Aquiles gaguejava, agarrado fortemente
ao celular, enquanto a colérica mulher, fazendo uso dos poderes concedidos pela
bíblica curiosidade feminina, o arrancava violentamente de suas mãos, para
depois perceber, com inusitada frustração, que o objeto daquela atenção não era
a suposta pornografia, mas, sim, apenas um gamezinho desses quase infantis.
Mais inocente do que isso, só se estivesse embalando um nenê. Desconcertada e
hesitante, ainda o menosprezou: “Um cabra velho desses, acordando de noite para
ficar com joguinhos? Tenha vergonha, seja homem. Pensei que era mulher pelada!”
O marido, lenta e silenciosamente,
escorregou pela colcha da cama, se enrolou com um pedaço de lençol permitido pela
ofendida esposa – que ainda resmungava – e, em posição fetal, fechou os olhos e
adormeceu.
Pela manhã, à mesa do café, Odisseia não
perdoava. Ria-se, zombava de Aquiles, e dizia, balançando a caneca no ar:
“Claro que você não pode ter disposição para trabalhar. Passa a noite agarrado
a joguinhos eletrônicos... Vou te contar, viu?”
Um sábado, cumpria ela o ritual de suas
tardes de salão de beleza, quando, na falta de assunto, desabafou com alguma graça
e descontentamento aquela história para as amigas. Elas caçoaram do marido: “Como
é bobo o Aquiles, gente...”.
Com pouco, no atávico confessionário das
madeixas, as clientes começaram a dar pitaco na vida da Odisseia e, curiosamente,
a revelar histórias, naquele contexto, engrandecedoras dos feitos de seus infiéis
maridos que, ao contrário do abestalhado Aquiles, eram bem ousados. E não se
restringiam à pornografia, ao sexo virtual, troca de nudes ou encontros às
escuras, esses fetiches bem anos 90, mas à presencialidade da sem-vergonhice
institucional mesmo, envolvendo casos de affair
com belas e magérrimas mulheres, supostas viagens de negócios convertidas a
férias conjugais em praias paradisíacas, as faturas intermináveis de cartões de
crédito com penduricalhos às amantes, as escapadelas do serviço com a colega de
trabalho para motéis – cumprindo a máxima “Antes de tarde, do que nunca” –, os frequentes desaparecimentos, após um suspeito
banho de colônia, em clubes de uísque, partidas de futebol ou de cartas com os “amigos”
todas as sextas, a coleção de B.O.s por “roubo” de aliança e celulares, entre
outros casos bizarros da mais pura sacanagem matrimonial.
Enquanto todas gargalhavam sob as escovas
atentas dos pacientes cabelereiros, superiora, alguém ainda sentenciava: “Eu
acho é bom. Assim ele me deixa em paz!”
Odisseia esboçava um sorriso de pose, mas
estava pasma e, ao mesmo tempo, sentia-se humilhada, ali, no centro da arena das
mais tórridas aventuras. Interrompeu o tratamento, “esquecera uma panela no
fogo” e correu para casa. “O que as amigas pensariam dela?”
Qual não foi a sua surpresa, quando, ao
entrar aos prantos no quarto, encontrou Aquiles com calcanhar e tudo no mais idílico
pelo, agarrando os seios fartos e então ofegantes de Felicidade, a diarista. Assim,
o marido saltou rapidamente aos pés da esposa, confirmando o seu tradicional script: “Meu amor, não é o que você está
pensando...”
Odisseia rebentou um sorriso, colocou a
bolsa novamente no ombro, deu meia-volta e saiu correndo ao salão para contar a
novidade: “Eu acredito, amooor... Eu acreditooooo...”
Leitura com suspense e expectativa. Gostei demais
ResponderExcluirGratíssimo, Malvinier. Depois dessa, não precisa ter medo de salão, tá? rsrsrs
ResponderExcluirRaymundo foi muito feliz:se há algo que tem seios fartos - fora a Fafá de Belém e a Jane Mansfield - é a diarista Felicidade e a própria felicidade.
ResponderExcluirTemos aqui, para nos dá uma segunda feira risonha, uma comédia greco-brasileira deliciosa.
Raymundo foi muito feliz:se há algo que tem seios fartos - fora a Fafá de Belém e a Jane Mansfield - é a diarista Felicidade e a própria felicidade.
ResponderExcluirTemos aqui, para nos dá uma segunda feira risonha, uma comédia greco-brasileira deliciosa.
Prof. Tião, essa serventia de acordar a segunda com humor, quando ela vem ou é possível, me agrada demais. A leitura gentil dos amigos mais ainda.
ExcluirPenélope, Penélope, não sabes desta Odisseia como não soubeste da outra. Teu tempo era para tecer o dia a dia e destecê-lo noite a fio. Não havia salão de beleza, embora houvesse beleza; tampouco havia botequins. Nestes tempos que correm ( não para os mares), há salões e botequins onde, nestes a Martelladas, como naqueles a esmaltadas, são pintadas num arco-íris insuficiente as motivações que animam as Heras e os Zeus de agora. Procuradores de botequim e animadoras de salão, para nossa alegria de cada dia, existe Homero, não em Berlim, mas em Fortaleza. Adorei, Raymundo Netto. Nem o fundo da busceta de Pandora é tão fundo, nem no fundo do baú do Raul há esperança de uma mosca no bacalhau dos generais, mas há muita graça na Felicidade da Odisseia. E Aquiles que mame e Pátroclo que reclame.
ResponderExcluirHahaha Seu retorno é uma crônica à parte, Armando Lucas. Grato.
ExcluirRaymundo, essa mulher que ficcionou tem sérios desvios.nao se pode dizer o mesmo da crônica, excelente, suspense, comicidade, um tema q deixa a curiosidade fluir. um abraço
ResponderExcluirHahaha Como o nome já diz, Lucirene: Odisseia! Uma quilometragem de léguas tiranas, prato cheio para análise. Obrigado.
ExcluirMuito bom ! :)
ResponderExcluirGrato, Victor, pela sua leitura.
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