O Presidente Vargas,
nosso simpático PV (o estádio de futebol mais querido do Ceará), virou um
importante hospital no combate ao Covid-19. Simples e aconchegante, possui a vantagem
de estar situado num bairro central, o Benfica, mais precisamente na
Gentilândia, capital amorosa do citado bairro. Amado por todos, mas bastante
negligenciado pelo Poder Público e mesmo pelos próprios frequentadores, vivia
rachado em suas estruturas de cimento, feio e sujo por fora e por dentro, uma
lástima: seus muros e bilheterias serviam de banheiro público para os feirantes
da pracinha ao lado.
Porém todos se sentiam bem, apesar da sujeira e
desorganização que reinavam. Era, podia se dizer, um estádio popular, com tudo de
bom e de ruim que isso possa significar. Preços mais baixos, acesso facilitado
pra carros, bicicletas, e até mesmo a pé, pois chegavam turmas de torcedores de
vários bairros em caminhadas, verdadeiras peregrinações.
Além da simplicidade, acesso facilitado, barzinhos
próximos, “churrasquinhos de gato” à vontade, me comovia de verdade o advento
da “hora do pobre”, quando o portão lateral situado na rua Paulino Nogueira era
aberto aos mais necessitados, estudantes e até vendedores ambulantes, faltando
uns quinze minutos para o término da partida.
Uma multidão se formava ao pé do muro da Escola Técnica
a olhar impaciente e alguns mais afoitos começavam a esmurrar a negra lâmina de
aço mal começava o segundo tempo. De vez em quando um guarda vinha à calçada e
olhava feio para os apressados, levando uma costumeira vaia.
Era o horário exato em que eu passava voltando da
faculdade, então me escorava no poste e puxava conversa a respeito do andamento
do jogo; os que tinham radinho de pilha nos informavam sobre os lances e gols,
sempre exagerados pela voz estridente dos narradores. Em muitos anos fiz
amizades com diversos frequentadores daquele ritual de paixão pelo futebol,
conhecendo alguns até pelo nome. Quando finalmente se abria a “porta da
esperança” corríamos, cada um por si: quem tinha bicicleta levantava-a acima da
cabeça e seguia desajeitado, quem carregava apenas o radinho levava vantagem na
disputa dos últimos espaços ao pé do alambrado.
Dependendo do resultado do jogo podíamos ser
recepcionados pelos torcedores que já estavam no estádio de maneira
completamente diferente. Vezes havia em que éramos vaiados sem dó nem piedade,
chamados de “lisos”, “pobreza” e até presenteados com sabugos de milho, latas
de refrigerante, líquidos suspeitos; em outras raras ocasiões chegávamos a ser
recebidos por palmas, geralmente quando o resultado era favorável.
Naturalmente não havia tempo para procurarmos lugar na
arquibancada, queríamos logo era chegar à primeira, segunda ou terceira fila ao
pé do alambrado. A confusão de cabeças se movendo lateralmente tentando desviar
as outras à frente na busca do lance de perigo era um balé de loucos, as vozes
aceleradas dos diversos locutores formavam uma sinfonia confusa de ruídos; mas
os olhos acesos, alegres ou frustrados buscavam até o último fiapo do
derradeiro segundo de desconto alguma esperança ou alívio.
Depois do apito final, desciam desorganizados os
afoitos torcedores de “cima”, já os de “baixo” apenas se viravam, tímidos,
procurando a saída. Então todos, agora indistintos e misturados que nem cupins,
seguiam juntos na direção da saída.
P.S.: Depois da reforma do
nosso querido PV desapareceram, quase que por encanto, a maioria dos “pobres”;
hoje o asséptico estádio parece destinado apenas à remediada classe média: a
classe mais baixa persiste somente em forma de vendedores, cambistas e
descuidistas que insistem em participar de um espetáculo que cada vez menos é
feito para eles.
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