quarta-feira, 8 de julho de 2020

"Leitores", de Pedro Salgueiro para O POVO



Sempre me chamava atenção quando, no meio dos afazeres na sua pequena oficina de sapateiro, entre consertos e cheiros de solas e colas, meu pai desamassava um velho jornal que viera embrulhando materiais de encomendas da capital, com paciência botava as folhas, muitas delas rasgadas, em cima de uma mesa ampla e riscada de ponta de faca no fabrico de sapatos, sandálias, cartucheiras... Com uma paciência tocante, deixava quase novinhas as páginas, que depois eram lidas com esmero por vários dias; não raro chamava um amigo para comentar uma notícia antiga que para ele tinha sabor de novidade, naqueles tempos em que as informações demoravam a chegar ao sertão.
            Alguns amigos que viajavam traziam também surrados revistas e almanaques, recordo de algumas “Seleções” amarrotadas, “Almanaque Fontoura” carcomido nos cantos, meio ensebados pelo manuseio das diversas mãos que passavam pela oficina, páginas dobradas indicavam histórias mais divertidas, até sovela já encontrei como marcador de páginas; às vezes eu chegava sorrateiro, perambulava por lá sentindo o cheirinho gostoso da cola na vaqueta, ia ao quintal, sem que ele me percebesse, tão entretido estava na sua leitura: uma vez, pego na distração, largou rápido a revista e recomeçou o trabalho, com jeito de menino que tivesse sido pego em flagrante nalguma danação.
            Seu Arimatéia (que devido as suas insistentes leituras era apelidado, não sem ironia, por alguns amigos de “Ari Mundial”, do que se orgulhava) escondia na gaveta da máquina de costura alguns cordéis com poemas populares, alguns com temas picantes que sempre lia pros amigos longe da vista da gente; não conto as vezes em que, subitamente, ele parava uma dessas leituras pela chegada de um estranho, mulher ou criança... Quando eu estava por perto logo me mandava fazer alguma tarefa bem distante, dar um recado inútil, que mesmo na minha pouca idade já sabia ser apenas uma forma de continuar, sem plateia indesejada, aquela leitura traquina.
Quando não queria testemunha para alguma conversa proibida ou leitura picante com os amigos, mandava-me ir à bodega do meu avô materno, logo do outro lado da rua – o que eu adorava, pois por lá sempre ganhava uns bombons e ficava peruando ele jogar damas com amigos, mas na maioria das vezes o velho Chico Inácio estava de cabeça baixa com seu livrinho de caubói em distraída leitura, aí não adiantava pedir a bênção nem olhar guloso pra lata de bombons, das páginas ele só arredava se algum freguês insistisse em bater com o nó dos dedos na gasta madeira do balcão.
Indo pra casa, costumeiramente avistava (no terreiro da sua casa de esquina no Alto das Pedrinhas) minha tia Maria sentada numa antiga cadeira de balanço com seu livrete à mão, então corria para casa buscar a velha edição de O País dos Mourões, de Gerardo Mello Mourão, que meu velho guardava na gaveta do guarda-roupa: pegava o volume e fingia lê-lo com aquele delicioso prazer dos adultos.
E hoje, matutando sobre meu vício por livros, chego à conclusão de que bem mais que ensinamentos na escola, conselho de professores etc., o que verdadeiramente me influenciou nesse gosto foram esses inveterados leitores que fui vendo pela minha infância afora. 







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