Sempre me chamava atenção quando, no meio
dos afazeres na sua pequena oficina de sapateiro, entre consertos e cheiros de
solas e colas, meu pai desamassava um velho jornal que viera embrulhando
materiais de encomendas da capital, com paciência botava as folhas, muitas
delas rasgadas, em cima de uma mesa ampla e riscada de ponta de faca no fabrico
de sapatos, sandálias, cartucheiras... Com uma paciência tocante, deixava quase
novinhas as páginas, que depois eram lidas com esmero por vários dias; não raro
chamava um amigo para comentar uma notícia antiga que para ele tinha sabor de
novidade, naqueles tempos em que as informações demoravam a chegar ao sertão.
Alguns
amigos que viajavam traziam também surrados revistas e almanaques, recordo de
algumas “Seleções” amarrotadas, “Almanaque Fontoura” carcomido nos cantos, meio
ensebados pelo manuseio das diversas mãos que passavam pela oficina, páginas
dobradas indicavam histórias mais divertidas, até sovela já encontrei como
marcador de páginas; às vezes eu chegava sorrateiro, perambulava por lá
sentindo o cheirinho gostoso da cola na vaqueta, ia ao quintal, sem que ele me
percebesse, tão entretido estava na sua leitura: uma vez, pego na distração,
largou rápido a revista e recomeçou o trabalho, com jeito de menino que tivesse
sido pego em flagrante nalguma danação.
Seu
Arimatéia (que devido as suas insistentes leituras era apelidado, não sem
ironia, por alguns amigos de “Ari Mundial”, do que se orgulhava) escondia na
gaveta da máquina de costura alguns cordéis com poemas populares, alguns com
temas picantes que sempre lia pros amigos longe da vista da gente; não conto as
vezes em que, subitamente, ele parava uma dessas leituras pela chegada de um
estranho, mulher ou criança... Quando eu estava por perto logo me mandava fazer
alguma tarefa bem distante, dar um recado inútil, que mesmo na minha pouca
idade já sabia ser apenas uma forma de continuar, sem plateia indesejada,
aquela leitura traquina.
Quando
não queria testemunha para alguma conversa proibida ou leitura picante com os
amigos, mandava-me ir à bodega do meu avô materno, logo do outro lado da rua –
o que eu adorava, pois por lá sempre ganhava uns bombons e ficava peruando ele
jogar damas com amigos, mas na maioria das vezes o velho Chico Inácio estava de
cabeça baixa com seu livrinho de caubói em distraída leitura, aí não adiantava
pedir a bênção nem olhar guloso pra lata de bombons, das páginas ele só
arredava se algum freguês insistisse em bater com o nó dos dedos na gasta
madeira do balcão.
Indo
pra casa, costumeiramente avistava (no terreiro da sua casa de esquina no Alto
das Pedrinhas) minha tia Maria sentada numa antiga cadeira de balanço com seu
livrete à mão, então corria para casa buscar a velha edição de O País dos Mourões, de Gerardo Mello
Mourão, que meu velho guardava na gaveta do guarda-roupa: pegava o volume e
fingia lê-lo com aquele delicioso prazer dos adultos.
E
hoje, matutando sobre meu vício por livros, chego à conclusão de que bem mais
que ensinamentos na escola, conselho de professores etc., o que verdadeiramente
me influenciou nesse gosto foram esses inveterados leitores que fui vendo pela
minha infância afora.
👏👏👏👏 Verdadeiro escritor da Literatura Brasileira.
ResponderExcluirSim, o Pedro o é.
ResponderExcluirTexto lindo, com memórias afetivas...
ResponderExcluirGrato pela leitura.
ExcluirUma Ótima herança!adorei.
ResponderExcluirGrato pela leitura.
ExcluirQue maravilha! E nós, "viciados em livros", nos encontramos onde o menino Pedro se encontrou.
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