segunda-feira, 28 de outubro de 2019

"Amor Fatal", de Raymundo Netto para O POVO



“Na alegria, na tristeza; na saúde, na doença... até que a morte os separe? Ora, nem a morte, ouviu, nem ela!”, clamava Amadeu apontando aos céus o dedo trêmulo em riste, postado ali, ao lado da mulher morta, manifestando a sua viuvez honesta e sisuda, enquanto os mesmos céus lhe respondiam com trovões gargalhantes. Amava a mulher mais do que tudo. Daí, quando anunciada a sua prematura e cara perda, os mais próximos pressagiaram: “O Amadeu se vai logo!” Só que ele não foi. Embora, durante os ritos fúnebres, sua dor fosse claramente assistida, transparecia ao mesmo tempo algum misterioso consolo. À boca pequena, todos comentavam, mas ninguém compreendia. Se ele se matasse, aí, sim, ninguém se admiraria.
Dias após a morte da amada, mudou-se de casa e se afastou dos familiares. Pensaram eles se tratar de um necessário exercício de desapego. E, de fato, quem o encontrava não lhe percebia a dor esperada daquela viuvez. Amadeu cumpria suas atividades na firma normalmente. Há quem diga, falava da morta como se viva fora. E não era por menos. Quem pudesse ingressar em seu novo endereço – e ninguém podia –, seguir o úmido corredor que levava ao quarto íntimo, encontraria uma mulher, vestida de branco, deitada na cama perfumada por incontáveis pétalas de rosas vermelhas. Ao lado da cama, a poltrona favorita de Amadeu, na qual ele lia para ela romances e poemas, contava sobre o seu dia e fazia as refeições. Tarde da noite, punha-se junto à sua pele fria e a beijocava com uma ternura de invejar a qualquer mulher, viva ou morta, a chorar o silêncio compreensível e doloroso daqueles lábios. Se já a amava viva, morta a amava muito mais.
Ninguém sabia do seu feito. Na noite do funeral, voltou ao cemitério, dirigiu-se à cova da amada, violou-a e retirou o seu corpo, depositando-o naquela casa, longe dos olhos bisbilhoteiros. Havia solicitado de uma firma russa de tanatopraxia o embalsamento do corpo da esposa. Fizera questão de estar presente. Aprendera a massagear os músculos enrijecidos, a retocar a maquiagem, as sobrancelhas e como utilizar cremes na pele e na boca. Injetava diariamente desinfetantes e outros líquidos de combate às bactérias e à formação de gases. Semanalmente, com auxílio de um equipamento adquirido ilegalmente, transfundia o seu próprio sangue, o que o deixava exaurido, quase morto, às vezes. Dessa forma, durante anos não sofreu a ausência da mulher... até conhecer Bartira, uma moça contratada para trabalhar com ele, em sua primeira experiência profissional. Amadeu assistiu com surpresa um desejo invasivo e despropositado a capturar seu corpo, sua cabeça, seu peito. Percebia nela, uma gentileza incomum e um sorriso sem igual, e, aos poucos, saía mais tarde da firma e dispensava os cuidados à esposa. Em casa, sentia remorso, tremia e gaguejava quando se aproximava dela. Confessava, mãos à cabeça, num vaivém doído, o que estava acontecendo. “Nunca a traí antes. Nunca!”
Uma tarde, porém, convidou Bartira para um sorvete. Ela topou. Parecia interessada. “Maldito dia em que conheci o seu sorriso. Não posso mais viver sem ele. Você quer ficar comigo? Quer?”
A moça, cansada da solidão e emocionada, chorou um sim esperançoso e feliz.
Naquela mesma noite, Amadeu, após uns goles de álcool, chegou pé ante pé no quarto do casal. Pediu perdão à mulher e a enrolou bruscamente no edredon, como se pudesse sufocá-la. “Eu te amo, eu te amo... mas eu preciso!”. Colocou o corpo no carro e dirigiu-se ao cemitério, lhe restituindo ao túmulo vazio.
Dias depois, era Bartira quem se dirigia àquele quarto pela primeira vez. Apesar de um pequeno estranhamento diante da escuridão e a umidade do ambiente, estava com seu amado, a quem confiava seu futuro e sua vida. Amadeu, fitando-a profundamente apaixonado, pôs-se a beijá-la até, em determinado momento, apunhalar as suas costas e lhe sufocar da boca o grito. Bartira desfaleceu. Ele, abraçando-a, sorriu. Imediatamente iniciou os preparativos, costurou-lhe a ferida, injetou-lhe líquidos e com esforço conseguiu lhe deixar na face aquele seu sorriso, aquele sem o qual não poderia viver. Comovido, ao seu lado, se convencia: para o amor, a morte não existe!


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