Benigno despertou em um assombro
extraordinário. Por cima dos olhos tingidos de pavor, uma
interrogação reluzia: “Qual o sentido de minha vida?”
Mastigando cereais
vencidos à mesa há anos solitária, buscava por algum premeditado e egoístico
ato heroico – como na maioria o é. Precisava abraçar uma causa nobre, aquela a
valer alguma fatia de glória imediata, o suficiente para sua alheia autoestima.
Assistindo na TV a um
histérico e dispensável noticioso policial – como a maioria também o é –, soube
que em certo lugar, na fronteira do país, havia contrabandistas de órgãos
humanos. Por associação esdrúxula de ideias, imaginou o destino de tais órgãos:
o salvamento de outras vidas! Sem demora, comprou passagem e se dirigiu àquele
lugar, resolvido a lhes ceder um rim.
Contrariando a máxima
do Barão de Itararé que afirma “de onde menos se espera, daí é que não sai
nada”, nem mesmo eu sei explicar como o tonto, extasiado na sua felicidade
burguesa, conseguiu encontrar tais contrabandistas.
Eles, claro, ainda
ressacados da noite anterior, riram-se a valer – também sem entender nada – e,
com todas as honras, o anestesiaram e, depois, em torpor profundo, o rebolaram
no bagageiro sujo da van, sala de cirurgia improvisada. Nesse momento, diante
da inesperada novidade, os malvados perceberam que poderiam tomar não apenas um
rim, mas os dois. Aliás, se já estavam ali mesmo, por que não arrancar tudo
aquilo que pudesse ser de proveito? Assim o fizeram. Levaram tudo: rins,
fígado, coração, pulmões, córneas, pâncreas, intestinos... e o que deu.
Motivados por uma bizarra gentileza, fecharam as suturas e largaram o corpo
gordo e nu à beira da estrada.
No dia seguinte,
Benigno acordou. Sentia-se mal, porém, mais leve. Sem córneas, não viu ninguém.
Percebeu pelo corpo as diversas costuras grosseiras e malfeitas. As linhas de
fios grossos espetavam o inchaço da pele inteira. Todavia, mesmo quando percebeu-se
enganado, não conseguia sentir ódio, pois a ele faltava o coração.
Ao ser encontrado por
populares, tentaram em vão descobrir contatos de parentes, amigos, colegas que
pudessem vir buscá-lo, socorrê-lo em tão inusitada situação. Mas ele não se
lembrou de ninguém – e não foi porque levaram também o seu cérebro, só por diversão,
é claro. O homem adorava a solidão, era avesso às manias e celebrações humanas
e ao cheiro de animais. Desconfiava de todo mundo, evitava sair de casa, seu
maior refúgio, e assim afastou-se de tudo e de todos.
No leito ao corredor
do hospital de caridade, ao questionar o médico plantonista sobre a gravidade
de seu caso, recebeu cruel prognóstico: “Lamento, o senhor não pode mais
morrer!”
Sim, com a ausência
de seus órgãos vitais, seria impossível o infarto, a trombose, cirrose,
enfisema, tuberculose, demência, nem a simples pneumoniazinha... “Meu Deus,
estou perdido para sempre”, angustiava-se o desanimado Benigno, cujo sangue
gelava parado em seu corpo imortal, enquanto revelava-se que, de fato, já havia
morrido desde quando passou a não existir para mais ninguém.