A última vez que Ziraldo veio ao Ceará participar de uma Bienal
aconteceu em 2010, a convite meu, quando estava curador da programação da
Bienal Internacional do Livro do Ceará, cujo tema era “O Livro a Leitura e os Sentimentos
do Mundo”.
Era abril, o mês do livro e do aniversário da cidade, e eu queria trazer
alguns nomes caros à infância brasileira, além de outros que, mesmo não tão
badalados naqueles tempos, decerto eram imortais na lembrança dos(as)
leitores(as) cearenses de todas as idades, como Carlos Heitor Cony, Affonso
Romano de Sant’Anna, Tiago de Mello, Marina Colasanti, Maurício de Souza, Pedro
Bandeira, Ana Miranda e Ziraldo. Claro, no quesito literatura infantojuvenil,
teríamos os(as) cearenses Horácio Dídimo, Socorro Acioli, Klévisson Viana,
Elvira Drummond, Tércia Montenegro, Arlene Holanda, Almir Mota...
Como curador da programação, fiquei responsável em receber os
convidados. Naquele dia, iria encontrar o Ziraldo no aeroporto. Disseram-me:
“Este não dá trabalho – alguns deram –, pois sempre vem com a esposa ou com o
agente dele. Bastava recebê-lo e deixá-lo no hotel.” Assim me disse a produção.
Contudo, não se deu assim. Ziraldo chegou sozinho! Quase correndo,
assustado, no meio do povo. Perguntei-lhe pela esposa: “Depois da festa de
aniversário que ela deu ontem, eu não sei nem quando ela vai acordar...” E o
seu agente?: “Quebrou o dedo do pé.”
Chegamos ao Marina Park Hotel, onde se hospedaria. Apresentei a ele a
equipe que estava ali à sua disposição, mas: “Raymundo, eu não fico sozinho!”
Perguntou se eu tinha o contato do Mino. Eu tinha. Que eu marcasse um almoço
com ele. Teria também uma entrevista agendada, mas não sabia onde, com alunos
do jornalismo da UFC – era para a revista Entrevista, sob a
coordenação do jornalista Ronaldo Salgado.
Enquanto acertava com o Mino o almoço no restaurante da Beira-Mar, tirei
de minha mochila uma encadernação com todos os 10 números da revista da Turma
do Pererê, pela Abril (1975), o seu retorno após a primeira
“temporada” pela O Cruzeiro.
Ziraldo se emocionou. Disse que aquelas ele não possuía. Autografou ao
seu estilo. Lamentou que naquele tempo estava chateado com a editora por conta
de divergências. “Cabeça-dura”, preferiu cancelar. Por outro lado, sabia que
poderia ter se empenhado mais, ter feito mais: “Ninguém falava ainda em
Ecologia nem na valorização da fauna nativa ou da cultura brasileira... Tinha
tudo para ser um sucesso maior!” Folheou demoradamente e depois devolveu a
minha pequena coleção agora autografada.
De fato, a Turma do Pererê foi a primeira revista em
quadrinhos brasileira feita apenas por um só autor, sendo também a primeira HQ
a cores publicada no país.
Saímos do hotel para nos encontrarmos com o Mino no restaurante do
Faustino, uma excelente vista para o mar. Muito bonito e divertido presenciar o
encontro desses dois talentosos cartunistas, ainda mais ciente da importância
de Ziraldo no rumo seguido pelo Mino, o pai do “Capitão Rapadura”, o herói que
(quase) tudo atura.
Por volta das 15 a 16h, chegou o Ronaldo Salgado acompanhado de um bom
grupo de jovens estudantes do 6º semestre do curso de Comunicação.
Pedi que Ziraldo tentasse não se estender muito, pois a mesa dele na
Bienal aconteceria no início da noite. Ele me tranquilizou... “Nem gosto muito
de falar. Em 15min, eu termino.” Quando sentou-se à mesa, começou a perguntar o
nome de um por um dos jovens entrevistadores. Quando o(a) estudante respondia,
ele perguntava: “E por que do seu nome?”. Pronto, ali fiquei certo que seria
uma longa, muito longa entrevista.
***
Após horas de
entrevista com aqueles estudantes,
chegamos com algum atraso ao antigo Centro de Convenções, sede da Bienal
Internacional do Livro. Aliás, foi a última edição da Bienal a acontecer ali. Passamos
rapidamente pelo auditório montado para recebê-lo. Como imaginávamos, estava
lotado: eram crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos ansiosos em ver
de perto o Ziraldo, realmente um ídolo de diversas gerações.
Preparava-me para subir ao palco e chamá-lo quando deu-se um “embaraço
devastador”: Ziraldo estava agoniado com uma cutícula de unha: “Eu não vou
conseguir falar se eu não tirar isso!” Liguei para a produção: “Pelamordedeus
arranjem logo um alicate de unha para esse homem!” Dirigimo-nos à Sala VIP e
ali ficamos até ele resolver esse aparente gigantesco imbróglio...
O tema que escolhi para a sua
palestra, claro, não poderia ser diferente: “Ler é mais importante do que
estudar!”
Ziraldo chegou ao palco ao som
de palmas entusiasmadas e afetuosas. Muitos ali o tinham bem de perto, da
cabeceira, na voz materna, em momentos de divertidas solidões. Descumprindo
qualquer protocolo, falou abertamente com a naturalidade encantatória dos
loucos. Distribuía sem pudor as suas impressões do mundo, a sua visão sobre a
educação, sobre a leitura e as suas pequenas fascinações.
Ao final, uma fila interminável de pessoas trazia seus livros para
autografar. Ele atendeu a todos. Permaneci ao seu lado e, daí, mesmo enquanto
autografava, falava comigo. Precisava que eu conseguisse algum lugar com telão
para ele assistir ao jogo do Flamengo que aconteceria naquela noite: “Tenho que
terminar antes do jogo. Você gosta de futebol? assiste comigo?”
Na verdade, não mesmo. Contudo poderia recorrer novamente ao Mino.
Liguei para ele, pedi mais esse favor, e ele aceitou. Disse-me que aguardaria
por nós dois no restaurante Dallas, onde poderiam encontrar o tal
telão. Como o Mino não dirige, deixaria um motorista para ambos.
Resolvido isso, Ziraldo ainda me falou que soube que estávamos
distribuindo R$ 5,00 para que os estudantes comprassem livros na Bienal, a tal
“Notinha Legal”: “É um desserviço. Livro com esse valor não presta!” Por
coincidência (ou não), uma garota estava com um livro dele na mão e eu
perguntei quanto custou. Respondeu toda sorrisos: “Só R$ 5,00. Está em
promoção.” Ele baixou a cabeça, desenhou o autógrafo e resmungou: “Por isso é
que eu não ganho mais dinheiro. Só R$ 5,00...”
De repente, um homem surgiu por trás da fila e acenou-lhe com um livro,
mais um de seus títulos, na mão: “Ziraldo, você gostou da edição? Está bonita,
né?” Ziraldo mirou apertando os olhos: “Está... Mas eu não estou lembrado de a
gente ter acertado esse não, viu? Vamos ter que conversar...”
A fila parecia não ter fim e ele começou a se aperrear: “E o jogo? Vou
perder o jogo?” Sugeri: “Resume o autógrafo. Não desenha.” “É mesmo, né?”,
disse. Porém, logo depois, chegou uma mocinha. Perguntou o nome dela:
“Marília”. Então, rapidamente ele se pôs a desenhar ondas do mar, um barco, um
sol... É, não adiantava, ele amava tudo aquilo. Dava gosto ver a alegria
daquelas pessoas abraçando-o, pedindo-me para tirar fotos com ele, mães
trazendo filhos que, como ela, descobriram o Ziraldo ainda na infância. A sua
presença, nunca tive dúvidas, seria para esse povo cearense um presente
impagável.
À noite, conforme acordado, o deixei no Dallas com o
Mino e, antes de eu voltar para casa, perguntou se eu poderia ir com ele na
manhã do dia seguinte à Revistas & Cia, do Silvyo Amarante,
pois estava curioso em conhecer o espaço e queria fazer umas comprinhas...
Lembrou-me: “Eu não fico sozinho, Raymundo!”
***
O voo do Ziraldo partia
por volta do meio-dia e por isso, muito cedo, eu já estava no hotel para
pegá-lo e levá-lo à revistaria do Silvyo Amarante.
Durante
o percurso, ele ligava para alguém. Contava alguma piada breve sobre “chifre” e
outros temas curiosamente do gosto masculino e logo perguntava por que aquela
pessoa não havia ido ao aniversário da Márcia, a sua esposa: “Rapaz, liga para
Márcia, diz que estava doente, fala qualquer coisa, pois ela estranhou muito a sua
ausência. Sério, só faltou você! Liga pra ela, liga!” Até chegarmos à loja do
Silvyo – e depois que saímos de lá –, ele deve ter ligado para umas oito
pessoas dizendo e pedindo a mesma coisa: “Só faltou você, meu amigo, liga pra
ela, liga!”
Entre
uma ligação e outra, me perguntava qualquer coisa sobre a cidade, sobre um ou
outro artista e se indagava porque não tinha aceito participar de um evento no
qual teria sido convidado no passado: “Raymundo, você sabe que eu só aceitei
vir porque era no Ceará. Você está me pagando uma pechincha.” Respondi: “É
mesmo? E você sabe que você foi, entre todos, o último e o único artista com
quem negociei diretamente o cachê?” Deu uma risada: “Vejam só, negociei com a
pessoa errada!”
Finalmente,
chegamos.
O
Silvyo o recebeu com a alegria de sempre. Além de sofisticado colecionador de
revistas dos mais diversos gêneros, é inteligentíssimo e tem uma memória
privilegiada. Cinéfilo, excelente contador de histórias e piadas, jogador
compulsivo de frescobol, nas horas vagas se dá ao exercício de elaborar poemas
quase épicos, utilizando palavras que se iniciam com uma única letra, como a
obra “Mundografia Moderna”, cujo prefácio é de Chico Anysio, humorista que
utilizava os versos do Silvyo em algumas de suas apresentações em teatros ou na
TV.
Claro,
o Silvyo o conduziria a caminhar pelo fantástico labirinto de estantes e caixas
que é a sua “Fortaleza da Solidão”, apresentando não apenas as raríssimas
coleções de revistas, miniaturas e estatuetas de personagens de quadrinhos,
como também acervos de ilustrações de artistas nacionais e internacionais.
Entre eles, o nosso saudoso Al Rio.
Diante
de tantos nomes de peso, o Ziraldo não se fez de rogado e, num pedaço de
parede, deixou também rabiscado um seu Menino Maluquinho a saudar o grande
Silvyo que, aliás, também foi um dos palestrantes convidados naquela Bienal.
Ziraldo,
durante o “passeio”, ia pedindo uma coisa e outra, colhendo “flores daquele
jardim”. Depois, sentou-se na banqueta do Silvyo, na entrada da loja, atendeu
telefonemas, foi fotografado pelos clientes que o reconheceram, contou algumas
outras histórias e, depois, tomamos o rumo direto para o aeroporto. Entre as
aquisições, as Playboy da Xuxa e da Luiza Brunet: “Vou levar. Acredita
que eu nunca vi?”
No
aeroporto, o problema era: tinha que comprar qualquer coisa para colocar o
grande número de livros e revistas que ele havia ganhado e comprado. Não foi
fácil. “O aeroporto de vocês é muito pequenininho...” Mas conseguimos. Quando
na hora de guardar tudo na bolsa – “A Márcia não sabe mais o que fazer com
tanta bolsa” –, ele perguntou: “E você não escreve? Cadê os seus livros?” Não
tinha levado nada. Fiquei de enviar depois. Nunca o fiz. E assim nos
despedimos. Cheguei a ligar para ele umas duas vezes, no máximo. As lembranças,
praticamente todas, de sua vinda e companhia, estão aqui registradas. Foram
apenas dois dias, mas memoráveis. Com a sua derradeira partida, todas essas
passagens pintadas há 14 anos me voltam à mente. Tão distantes, que sinto como se
fora um filme antigo. Esforço-me para lembrar mais detalhes, todos, porém
muitos se perderam irrecuperavelmente, assim como a minha coleção da Turma
do Pererê, valiosamente ali autografada, contudo, degustada criminosamente
por meus vis cupins.
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