segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

"Amante (PARTE III)", de Raymundo Netto para O POVO


Vitória batia à porta de Jandira logo na manhã seguinte à súbita conversa telefônica na qual revelava: “o coração de Ramon parou pela segunda e última vez”. Conforme a lacônica irmã, a primeira fora quando se sentira rejeitado pela mulher amada: “Depois daquele dia, nunca mais foi o mesmo. Acabou-se, fechou-se para o mundo e para a vida.”

Surpresa, Jandira abriu a porta para Vitória. No entanto, entre a hesitação de convidá-la ou não, a assistiu entrar ligeira na sala, pelo visto trazendo o mesmo peso de silêncio na alma. Não a ofereceu nada, nenhuma gentileza ou cordialidade. Vitória parecia abalada, como se procurasse algo que perdera e que, apesar do tempo, nunca dera conta. Sentou-se no sofá e pediu desculpas por não a ter reconhecido por nome durante a ligação. Claro, era a irmã de Ramon. Não a conhecera pessoalmente, mas o namorado falava muito dela, pois sendo eles órfãos, Jandira era o que ele tinha, não apenas como família, mas como mãe. Jandira sentou-se na cadeira de balanço ao lado de um antigo aparelho de TV. Sentia alfinetar os olhos, disfarçou o tremor do queixo, mas não chorou: “É verdade, eu era ‘irmãe’ dele... do Ramon. Pobre menino, se deixou levar.”

Vitória, com um incômodo sorriso de canto de boca e o olhar perdido no além, ajeitou os óculos e pôs-se, carinhosamente, a falar dele, do adolescente que ele foi, coisas das quais conhecera bastante e compartilhara com ele mais do que com qualquer outra pessoa. E, naquele instante, estranhava ela própria ainda lembrar de tudo aquilo com tantos detalhes. Entre essas lembranças, não diria nunca, mas estava aquela casa. Só fora ali uma única vez, a namorar, justamente aproveitando a ausência de Jandira.

A irmã ouvia em um misto de indignação e de saudade. Uma vontade de mandá-la à rua. Ao mesmo tempo, de trancá-la e guardar para sempre aquelas memórias tão queridas. Suspirou e, de repente, ergueu-se: “Quer conhecer o quarto dele? Está como ele deixou. Não tive coragem de...” Engoliu a voz, espremendo toda sua dor no rosto vermelhecido.

Vitória levantou-se assombrada. De certa forma, achava quase um sacrilégio entrar no quarto do ex-namorado, mas a curiosidade aliada àquela tensão a conduziu.

Seu coração batia forte ao entrar no quarto úmido, escuro e abafado. Impossível não ser contaminada pela melancolia ali apresada. Jandira abriu a janela e saiu.

Vitória, sem ter a certeza de que deveria ou queria estar ali, passou um tempo em pé, quase imóvel, segurando com as duas mãos a alça da bolsa encostada nos joelhos. Após uma breve panorâmica, caminhou lentamente pelo quarto de piso em tacos, a começar pela mesa de trabalho onde encontrou em um velho porta-retrato – um presente dela – uma foto do casal. Ela sorriu. Pareciam tão felizes, tão lindos. Largou a bolsa no chão e, involuntariamente, trouxe com as duas mãos o retrato ao peito, enquanto na sua memória despontavam vozes, promessas e risos, muitos risos. Sim, estavam felizes. Se amavam. E pela primeira vez em tantos anos verteu uma lágrima, talvez não por ele, mas por ela, por aquela felicidade pintada no retrato, apenas nele, não a reconhecendo mais. Mantendo-o ao peito com uma das mãos, passou a vasculhar em torno com a outra. Livros, revistas, canetas, uma antiga máquina de escrever, o notebook e, preso a um clipe, uma outra foto. Desta vez, não é ela, mas outra: “É Virgínia.”

“Virgínia e Vitória”, desde a escola apelidadas de “as gêmeas” devido à semelhança física e a amizade “grudenta” entre elas. Não havia segredos. Viajavam juntas. Dormiam uma na casa da outra e, durante um tempo, até usavam roupas iguais. As melhores amigas, até o surgimento de Ramon, já no ensino médio. O namoro deles, naturalmente, as afastou. Pensava nisso ao olhar aquela desconhecida foto, quando Jandira entrou no quarto: “Você se lembra dessa moça?” “Sim, claro, é... era minha amiga”. Jandira deitou, lenta e pensativa, uma bandeja com uma xícara de café sobre a mesa e, com um tom enrouquecido, revelou: “Ela namorou ele quando você... você sabe.”

 

(CONTINUA DAQUI A 15 DIAS NESTE MESMO CANAL)


 

8 comentários: