domingo, 27 de dezembro de 2020

"A Sombra e sua Claridade", de Pedro Salgueiro para O POVO


No meio de tantas notícias ruins, tragédias públicas e privadas, governo necrófilo negacionista das ciências e pastores (também padres) charlatães, nos deparamos com diversas reações ao caos, desde o desespero à improvável tranquilidade; para procurar uma sociabilidade que se tornou difícil com as restrições de uma pandemia, vamos enchendo os muitos grupos das redes sociais na internet com nossa presença excessiva, onde gritos de dor e lamentos convivem com a pilhéria e ódio de outros, o desespero com a fé (nem sempre somente a religiosa, mas das artes, da política etc.), o riso inocente se mistura com o palavrão... o escárnio com o otimismo... infinitas são as misturas possíveis, quase todas explosivas, vezes cínicas, excludentes noutras.

Não há grupo, familiar ou de amigos, de reles conhecidos, de superficiais partidários dos mesmos afãs, que não tenha paredes trincadas, laços eternos azedados, amizades desfeitas, parentescos renegados, juras eternas esquecidas... Novos pactos de amor e ódio, união ou intolerância vão fincando raízes: nunca mais seremos os mesmos!, dizem uns; com o sofrimento havemos de melhorar!, esperam outros... Ah, não, o ser humano será sempre o mesmo!, desdenham os pessimistas... Deus está na frente de tudo!, acreditam outros... E dessa mistura ampla e rasa vão surgindo verdades provisórias e ligeiras... que não sabemos aonde vão dar.

Nosso humor estará refém dessa rede de intrincada de opiniões, suas intrigas e soluções: estou triste e procuro um amigo ou grupo mais leve que me libere o enorme peso; quando mais revoltado vou às cavernas da ira de outros nichos buscar pólvora para meus estopins... Vivo, pois, a mercê dos meus e dos outros humores (não seriam horrores?). Não só nas gentes de carne e osso procuro âncoras, trisco nas músicas, peças e livros: dia desses desisti de conversar com um amigo quase sempre bem-humorado, mas que nesse dito dia estava deverasmente intratável: “Tudo em paz por aí?”, iniciei otimista. “Como assim?”, me respostou com outra pergunta. “Como poderia, né!?”, apaziguou... Mudei de assunto, percebendo que não teria arrego nem consolo. Desisti e fui para um dos meus livros de segurança à cabeceira (O Barril Mágico, de Bernard Malamud); olhei onde o marcador estava e continuei a leitura: “Davidov, escrivão, abriu a porta sem bater, entrou mancando no cômodo e sentou-se, cansado. Pegou o caderno de anotações e pôs-se a trabalhar. Rosen, ex-vendedor de café, abatido, com olhos sem esperança, estava sentado, imóvel, com as pernas cruzadas em sua cama estreita. O cômodo era quadrado, limpo, porém frio, iluminado por um globo de luz fraca. Eram poucos os móveis: a cama, uma cadeira dobrável, uma pequena mesa, velhas cômodas sem pintura – não havia armários, tampouco havia necessidade deles – e uma pequena pia com um pedacinho de sabão verde barato na saboneteira. O cheiro forte do sabão se espalhava no ar. A velha persiana preta estava totalmente baixada, o que surpreendeu Davidov.

      – Por que não levanta a persiana? – perguntou ele.

      – Deixe como está.

      – Por quê? Está claro lá fora.

      – Quem precisa de claridade?

      – Então do que é que o senhor precisa?

      – De claridade é que não é – respondeu Rosen.”

Percebi que mesmo no livro continuava conversando com o amigo depressivo, então larguei o volume e fui tentar um cochilo.




 

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