“Você já vai embora? Assim?”
Estava
insegura, mas tinha que abordá-lo antes que ele saísse por aquela porteira. Era
noite e ela sabia: ele teria que caminhar muito até a estação. Sem entender o
porquê da pergunta, o rapaz acomodou a mochila às costas: “Sim, claro. Você não
sabia?”
Ofegante,
ela mordia o lábio inferior, buscava as pontas dos dedos e das unhas e, depois
de apertar os olhos, o fitou novamente, quase não conseguindo lhe falar: “Não
está se esquecendo de nada?” Ele colocou as mãos nos bolsos da calça, da
jaqueta, e sorriu: “Não, creio que não...” Então, trêmula, pegou a mão dele,
passou em seu rosto, acolheu entre suas mãos em um abraço no peito e chorou: “E
de mim? Você não está se esquecendo de mim?”
Taveira
era jornalista. Designado a fazer uma matéria no interior, hospedou-se em uma
fazendola de um casal de agricultores. Eles eram idosos e tinham como única
filha e companhia uma moça de 18 anos, Laura, cuja maior parte da vida estava
cerceada ali, como aquele terreno de seus pais.
Ele, por
indicação e por ser útil à matéria encomendada, quedou-se naquele sítio.
Durante 15 dias, seria Laura quem o atenderia em suas necessidades, fazendo-lhe
ou lhe trazendo as refeições, preparando seu banho, lavando e passando-lhe a
roupa, trazendo-lhe o gostoso café passado no pano, segundo a mãe, a sua
especialidade. A moça, quase muda, por vezes o acompanhava quando precisava se
dirigir a qualquer lugar naquela região. Na verdade, a sua presença silenciosa
e esguia por pouco não era notada por Taveira, sempre concentrado e envolvido
em sua escrita ao computador. Entretanto, quando ele precisava, logo a percebia
à sua volta, fazendo qualquer coisa, fosse varrendo, arrumando a cama,
bordando, lendo ou mesmo não fazendo nada. Estava sempre ali, orbitando, à sua disposição.
Mesmo assim, ele nunca imaginaria que, por trás daquela dedicação, pudesse
haver qualquer sentimento. Até que, naquele instante, diante dele, ela, entre
soluços suplicantes, lhe confessaria, arrasada: “Eu te amo tanto!”
Impactado,
ele, que só conhecia o amor de oitiva, paralisou. As nuvens escuras se abriram,
revelando uma lua gigante a incendiar um clarão feito holofote no rosto dele,
quando respondeu a ela: “Mas eu não amo você...”
Como
lancetada pela dureza fria daquelas palavras, tomada de vergonha, ela deu
meia-volta e, chorando, correu desabalada ao jardim da sua casa. Sem saber o
que fazer, Taveira chamou por seu nome, uma ou duas vezes, quis acompanhá-la,
mas achou por bem abrir a porteira e partir. Tinha que partir.
Na noite
seguinte, em seu apartamento, ao deitar, uma surpresa: Laura lhe apareceu em
sonho, nua e linda. Num absurdo, podia sentir o calor de seu corpo, de seu
hálito, de seu beijo. “Eu te amo tanto!”, repetia ela, com olhar fixo ao seu,
enquanto movia lenta e precisamente o seu corpo. Ele não conseguia entender,
mas aquela moça, pela qual não sentia nada, o possuía completamente.
Estranhava, porém, não querer acordar, e se entregava àquela volúpia a lhe
tomar o espírito e a razão. Como fora possível não perceber tanta doçura, tanto
encanto nela? E, a partir daquela noite, em todas, todas as demais, nunca mais
conseguiu dormir sem ser completamente arrebatado por ela, a extrair dele todos
os seus desejos mais secretos.
***
“Deixe-me, pelo amor de Deus. Me esqueça, mulher!”
Taveira mais
uma vez despertava delirante, em suores, enlouquecido. Há mais de uma semana não
dormia uma noite sequer, seduzido pela inquietante e noturna visita de Laura,
em sonho, a proporcionar-lhe prazeres antes inconcebíveis. Porém, diante
daquela sua dominação, vivia exausto, doído, sem conseguir concatenar qualquer
ideia ou escrever qualquer coisa.
Cedo,
diante do espelho, a revelar o seu péssimo estado, ainda podia ouvir, pela
enésima vez, a voz de sua amante onírica a sussurrar “Eu te amo tanto!”
Arrastava-se
sonolento à calçada naquela manhã, quando cruzou com uma mendiga de medonha
aparência a esmolar sentada e encostada à parede. Ela o pegou pelo tornozelo e apontando
para o chão, anunciou: “Hômi, cê tem mermo duas sombras?”
Taveira, no
susto, não conseguiu acreditar: estavam ali, sim, impressas na calçada, as
ditas sombras apontadas pela mulher. Saltou para trás, tentou chutá-las, sair
de cima delas, mas era impossível se libertar daquilo. A mulher ria: “Cê negou um
amô debaixo de luar, pisando na sombra dela, num foi?” Meneou a cabeça como
coisa sem jeito: “Nunca mais que ela vai se esquecer docê...”
Ainda
admirado com o fenômeno e, de assalto relacionando-o com a suas noites cativas,
em desespero, pôs-se a sacudir a velha: “E o que é que eu faço, minha senhora?
O que eu devo fazer para me livrar dessa, dessa... maldição?”
A mulher o
rejeitou furiosa. Como se enojada, olhou-o de cima abaixo: “Ela deve de tá
morrendo, num sabe? Uma pessoa sem sombra num é nem mais gente. Oxe, devolve
pra ela o que cê roubou!” “Mas devolver o quê? A sombra?”, insistia ele: “Eu tenho
que devolver a sombra dela?”
A velha
acocorou-se novamente sobre os tornozelos magros, colocou as mãos em pala na
testa e murmurou com estranho desânimo: “O seu coração!”
Naquilo, Taveira
sentiu o golpe no peito. Durante os próximos dias, temia e evitava caminhar sob o sol. No
escuro do quarto, chorava ao vê-la novamente entrar pela janela, deitar sobre ele, roçar o
rosto ao seu, abraçando-o, a revelar sempre como em uma primeira vez: “Eu te
amo tanto!”
Não
suportando mais a angústia, mesmo sem saber o que iria fazer, se pedir perdão
ou ameaçá-la, ainda cedo partiu para o sítio onde a conhecera. Desceu na rodoviária
e caminhou algumas léguas de terra batida, aterrorizado, assistindo àquelas
sombras projetadas a caminhar lado a lado, se encontrando a cada passo.
Chegando,
abriu a porteira e bateu palmas. Não sendo recebido por ninguém, entrou na
casa. O pai de Laura estava na sala, sentado em sua poltrona, alheio. Mesmo
sendo chamado, não emitiu um som, nem único movimento. A sua esposa, com olhar
quebrado, surgiu à porta da cozinha: “Ele não fala, não vê, não faz mais nada
desde que a nossa menina se foi. Você não imagina como é duro para os pais ter
que enterrar a própria filha.”
Na
sequência, sentada ao lado do marido, contou da moléstia repentina que a tomou
trágica e fatalmente em poucos dias. “O doutor nunca vira aquilo. E tão moça...” Nisso,
Taveira, mudo, se dirigiu à cozinha, passou um café no pano, com estranha
habilidade de costume, trouxe ao casal, e os amparou até o resto de seus dias.
Às noites
de luar, poderia ser visto, à varanda, bordando qualquer coisa e admirando as
teias de aranhas que cresciam e encobriam completamente toda aquela casa.
Texto forte!
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