sábado, 25 de agosto de 2018

"Amor Sombrio" (parte I e II), na íntegra, de Raymundo Netto para O POVO



Você já vai embora? Assim?”
Estava insegura, mas tinha que abordá-lo antes que ele saísse por aquela porteira. Era noite e ela sabia: ele teria que caminhar muito até a estação. Sem entender o porquê da pergunta, o rapaz acomodou a mochila às costas: “Sim, claro. Você não sabia?”
Ofegante, ela mordia o lábio inferior, buscava as pontas dos dedos e das unhas e, depois de apertar os olhos, o fitou novamente, quase não conseguindo lhe falar: “Não está se esquecendo de nada?” Ele colocou as mãos nos bolsos da calça, da jaqueta, e sorriu: “Não, creio que não...” Então, trêmula, pegou a mão dele, passou em seu rosto, acolheu entre suas mãos em um abraço no peito e chorou: “E de mim? Você não está se esquecendo de mim?”
Taveira era jornalista. Designado a fazer uma matéria no interior, hospedou-se em uma fazendola de um casal de agricultores. Eles eram idosos e tinham como única filha e companhia uma moça de 18 anos, Laura, cuja maior parte da vida estava cerceada ali, como aquele terreno de seus pais.
Ele, por indicação e por ser útil à matéria encomendada, quedou-se naquele sítio. Durante 15 dias, seria Laura quem o atenderia em suas necessidades, fazendo-lhe ou lhe trazendo as refeições, preparando seu banho, lavando e passando-lhe a roupa, trazendo-lhe o gostoso café passado no pano, segundo a mãe, a sua especialidade. A moça, quase muda, por vezes o acompanhava quando precisava se dirigir a qualquer lugar naquela região. Na verdade, a sua presença silenciosa e esguia por pouco não era notada por Taveira, sempre concentrado e envolvido em sua escrita ao computador. Entretanto, quando ele precisava, logo a percebia à sua volta, fazendo qualquer coisa, fosse varrendo, arrumando a cama, bordando, lendo ou mesmo não fazendo nada. Estava sempre ali, orbitando, à sua disposição. Mesmo assim, ele nunca imaginaria que, por trás daquela dedicação, pudesse haver qualquer sentimento. Até que, naquele instante, diante dele, ela, entre soluços suplicantes, lhe confessaria, arrasada: “Eu te amo tanto!”
Impactado, ele, que só conhecia o amor de oitiva, paralisou. As nuvens escuras se abriram, revelando uma lua gigante a incendiar um clarão feito holofote no rosto dele, quando respondeu a ela: “Mas eu não amo você...”
Como lancetada pela dureza fria daquelas palavras, tomada de vergonha, ela deu meia-volta e, chorando, correu desabalada ao jardim da sua casa. Sem saber o que fazer, Taveira chamou por seu nome, uma ou duas vezes, quis acompanhá-la, mas achou por bem abrir a porteira e partir. Tinha que partir.
Na noite seguinte, em seu apartamento, ao deitar, uma surpresa: Laura lhe apareceu em sonho, nua e linda. Num absurdo, podia sentir o calor de seu corpo, de seu hálito, de seu beijo. “Eu te amo tanto!”, repetia ela, com olhar fixo ao seu, enquanto movia lenta e precisamente o seu corpo. Ele não conseguia entender, mas aquela moça, pela qual não sentia nada, o possuía completamente. Estranhava, porém, não querer acordar, e se entregava àquela volúpia a lhe tomar o espírito e a razão. Como fora possível não perceber tanta doçura, tanto encanto nela? E, a partir daquela noite, em todas, todas as demais, nunca mais conseguiu dormir sem ser completamente arrebatado por ela, a extrair dele todos os seus desejos mais secretos.
***
“Deixe-me, pelo amor de Deus. Me esqueça, mulher!”
Taveira mais uma vez despertava delirante, em suores, enlouquecido. Há mais de uma semana não dormia uma noite sequer, seduzido pela inquietante e noturna visita de Laura, em sonho, a proporcionar-lhe prazeres antes inconcebíveis. Porém, diante daquela sua dominação, vivia exausto, doído, sem conseguir concatenar qualquer ideia ou escrever qualquer coisa.
Cedo, diante do espelho, a revelar o seu péssimo estado, ainda podia ouvir, pela enésima vez, a voz de sua amante onírica a sussurrar “Eu te amo tanto!”
Arrastava-se sonolento à calçada naquela manhã, quando cruzou com uma mendiga de medonha aparência a esmolar sentada e encostada à parede. Ela o pegou pelo tornozelo e apontando para o chão, anunciou: “Hômi, cê tem mermo duas sombras?”
Taveira, no susto, não conseguiu acreditar: estavam ali, sim, impressas na calçada, as ditas sombras apontadas pela mulher. Saltou para trás, tentou chutá-las, sair de cima delas, mas era impossível se libertar daquilo. A mulher ria: “Cê negou um amô debaixo de luar, pisando na sombra dela, num foi?” Meneou a cabeça como coisa sem jeito: “Nunca mais que ela vai se esquecer docê...”
Ainda admirado com o fenômeno e, de assalto relacionando-o com a suas noites cativas, em desespero, pôs-se a sacudir a velha: “E o que é que eu faço, minha senhora? O que eu devo fazer para me livrar dessa, dessa... maldição?”
A mulher o rejeitou furiosa. Como se enojada, olhou-o de cima abaixo: “Ela deve de tá morrendo, num sabe? Uma pessoa sem sombra num é nem mais gente. Oxe, devolve pra ela o que cê roubou!” “Mas devolver o quê? A sombra?”, insistia ele: “Eu tenho que devolver a sombra dela?”
A velha acocorou-se novamente sobre os tornozelos magros, colocou as mãos em pala na testa e murmurou com estranho desânimo: “O seu coração!”
Naquilo, Taveira sentiu o golpe no peito. Durante os próximos dias, temia e evitava caminhar sob o sol. No escuro do quarto, chorava ao vê-la novamente entrar pela janela, deitar sobre ele, roçar o rosto ao seu, abraçando-o, a revelar sempre como em uma primeira vez: “Eu te amo tanto!”
Não suportando mais a angústia, mesmo sem saber o que iria fazer, se pedir perdão ou ameaçá-la, ainda cedo partiu para o sítio onde a conhecera. Desceu na rodoviária e caminhou algumas léguas de terra batida, aterrorizado, assistindo àquelas sombras projetadas a caminhar lado a lado, se encontrando a cada passo.
Chegando, abriu a porteira e bateu palmas. Não sendo recebido por ninguém, entrou na casa. O pai de Laura estava na sala, sentado em sua poltrona, alheio. Mesmo sendo chamado, não emitiu um som, nem único movimento. A sua esposa, com olhar quebrado, surgiu à porta da cozinha: “Ele não fala, não vê, não faz mais nada desde que a nossa menina se foi. Você não imagina como é duro para os pais ter que enterrar a própria filha.”
Na sequência, sentada ao lado do marido, contou da moléstia repentina que a tomou trágica e fatalmente em poucos dias. “O doutor nunca vira aquilo. E tão moça...” Nisso, Taveira, mudo, se dirigiu à cozinha, passou um café no pano, com estranha habilidade de costume, trouxe ao casal, e os amparou até o resto de seus dias.
Às noites de luar, poderia ser visto, à varanda, bordando qualquer coisa e admirando as teias de aranhas que cresciam e encobriam completamente toda aquela casa.




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