Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, por Carlus Campos
Vou contar por que às vezes gosto de
errar: tenho um amigo que sempre me escreve quando cometo algum erro numa
crônica; se passo um tempo sem errar, eu vou ficando com tantas saudades de
suas mensagens que acabo cometendo mais um erro, para que ele me escreva. Ele
cai nessa singela armadilha, como um patinho.
E quando ele me manda um elogio, para
mim tem o valor multiplicado, pois este meu amigo é sempre austero em
aprovações, já o ouvi a desancar livros considerados obras- primas. Ele é um
verdadeiro intelectual, daqueles que já não se fazem mais por aqui nos dias de
hoje, capaz de uma rara amplidão. “Sou como uma espécie de abelha que pousa por
aí em qualquer flor e tenta extrair o material para produzir seu mel”, ele diz,
sobre sua versatilidade. Além de sábio, é poeta.
Ouvi-lo é um encanto, para quem
aprecia a inteligência. Como ele sabe muito sobre variados assuntos, envereda
por laterais, faz voltas imensas, leva-nos por inesperados caminhos, ensina,
questiona, informa, teoriza, filosofa, parece distante demais do ponto de
partida, do tema central, mas, quando pensamos estar perdidos, subitamente seu
pensamento volta à ponta da linha que estava desenvolvendo, e ele fecha a
questão com alguma ideia inesperada.
Tão bom acompanhar essa mente em
devaneios... Tantos compartimentos... A sensação é de que uma luz vai
percorrendo a nossa cabeça, e vamos ficando também cultos como esse mestre, mas
é só uma ilusão. A sua erudição é conta de uma vida inteira.
Sempre que o ouço, fico silenciosa,
pensativa, sobre como é que uma pessoa chega a este ponto de guardar
conhecimentos, e como é vasta a mente humana e como é infinita a nossa memória,
capaz de reter tantas estrelas como se fosse um universo. É esta a impressão
que ele nos passa, de que o ser humano é um universo infinito. De que não há
limites para a mente humana.
Quando criança eu pensava que o
conhecimento era nato, só com o tempo foi que percebi, vem dos livros – e dos
mestres que o receberam dos livros. Confesso que amo perder-me na mente de
outros seres, e quando não estou andando, estou lendo, não posso sentar e
pensar, os outros pensam por mim. (Frase sem sentido.) O meu amigo pode ser
visto como um livro que caminha e sorri. Ou se agasta. Vida entre livros. Não
há limites para a mente humana (a repetição da frase terá sido um erro?) Vida
através de livros. Uma erudição imensa, mas discreta, que pode ser muito
engraçada e às vezes cruel, porque tais pessoas não podem enganar a si mesmas
nem a outrem. Tudo isso, sem nenhuma utilidade aparente, a não ser tornar
melhor o ser humano.
Outro dia eu o vi a escolher um livro,
numa pilha de exemplares variados sobre uma mesa. Ele se curvava, reverente,
até chegar bem perto de cada livro que averiguava, como se quisesse sentir o
cheiro das páginas. Ou uma emanação de outra natureza. Ou entrar numa abóbada
invisível que circundasse o volume. Ou como se estivesse a ouvir a voz do
livro. A perguntar, e a ouvir respostas. Um diálogo silencioso, de gestos, de
percepções. Suas mãos pareciam pássaros bem leves, luminosos, que quase não
tocavam nos livros, quando retiravam algum da pilha. Quanta delicadeza! Seus
olhos, como nascidos da deusa que confinou um fogo nas membranas e tecidos
finos segurando uma água profunda que flui em torno mas deixam transparecer as
chamas internas. Ele virava o livro, olhava por diante, por trás, a lombada,
lia o que estivesse escrito na quarta capa. Às vezes um leve sorriso, às vezes
uma leve desaprovação, uma recusa, um acolhimento. Abandonava o livro, mas com
respeito.
Se ficava interessado, seus olhos se
acendiam. E ele abria o livro para ler as orelhas. Folheava o miolo, lia aqui e
ali, numa concentração absoluta, como se nada mais houvesse no mundo, só ele e
o livro. Era possível ver em sua expressão um diálogo com o livro, a sucessão
de memórias que ocorria a cada palavra lida, a profundeza dos atingimentos. A
familiaridade no trato. O elemento delicadamente possuído. Uma beleza de
instante inesquecível. Professor Diatahy
Bezerra de Menezes. Aquele homem tão elegante em seu blazer marinho, sua
camisa alva, a pureza de uma vida dedicada ao estudo, ao ensino, à casa com
quintal, ao neto... Sabedoria. Flor que nasce do mel de uma flor que nasce do
mel de outra flor...
Nenhum comentário:
Postar um comentário