sábado, 20 de junho de 2015

"Tempo Perdido", crônica de Ana Miranda para O POVO


Quero escrever a minha crônica, mas antes preciso emitir uma nota fiscal. Mas, não posso me esquecer de cancelar o agendamento na Polícia Federal! Há dias que estou tentando renovar o meu passaporte. Tenho o passaporte válido, vai vencer daqui a seis meses. Seria o caso de uma simples revalidação. Mas tenho de levar todos os documentos, como se fosse tirar o passaporte pela primeira vez. Juntei os documentos, preenchi o formulário, paguei, agendei e fui. Perdi aí uns dois dias. Não aceitaram a certidão tirada pela internet. Preciso ir ao Rio de Janeiro para tirar outra? E se o cartório não existir mais? Tive uma noite de insônia, temendo não conseguir renovar o passaporte e nunca mais visitar os netos... Será que compro as passagens? Ou não compro? Enquanto resolvo o problema, preciso cancelar o agendamento, o policial me disse que tenho de cancelar, ou marcar nova data, mas quando terei o novo documento? Ufa, preciso escrever a crônica!
Lembrei! Preciso verificar se cancelaram o meu telefone fixo, na primeira tentativa pedi o cancelamento depois de gastar horas de tentativas até que finalmente consegui, mas um mês depois chegou a conta e depois de horas de tentativas descobri que não tinha sido cancelado apesar do meu pedido e mesmo tendo o protocolo do pedido tenho de solicitar a gravação do pedido para tentar o reembolso da conta indevida. A mocinha me fez perder uns bons minutos repetindo e tentando fazer com que entendesse a palavra Aquiraz. Aquiraz! A-qui-raz! Com zê. A! Qui! Zê, minha filha!
Também não posso esquecer de pagar o GPS da empregada doméstica, a mensalidade do MEI, preciso imprimir, assinar, reconhecer firma e enviar pelo Sedex um contrato com uma editora para a publicação de um microconto de três linhas, gasto mais tempo com as medidas do que com o conto, e tenho de ir ao banco porque não consigo pagar nada pela internet, o banco vai estar como sempre lotado, e se eu pegar novamente uma virose, quantos dias vou ficar de cama, sem trabalhar? O tempo corre. Preciso escrever a crônica!
Mas preciso renovar a carteira de motorista, vou ter de refazer todos os procedimentos, novos exames, tudo de novo – a minha nora, que mora em outro país, pede a renovação pela internet e recebe pelo correio uma nova carteira, já que ela não tem multas. Mas graças a Deus já consegui me livrar do processo de aposentadoria, graças a uma alma boa de um funcionário do INSS que ficou com pena de mim. Preciso anotar na carteira de trabalho da doméstica as férias, preciso averiguar se é preciso pagar INSS sobre o adicional de férias, e preciso procurar saber sobre relógio de ponto, ou folha de ponto, e...
A crônica! Ah, agora preciso esperar que o meu computador faça as atualizações, e preciso atualizar o meu cadastro no banco, e preciso conseguir falar com o meu suporte para eliminar o malware, as propagandas não me deixam em paz na internet... o celular está tocando, meu coração acelera, pode ser um presidiário, ou um lobista tentando me empurrar um novo cartão ou um novo plano de telefonia... Minha senhora eu já disse centenas de vezes que este telefone não é de nenhuma Mariana! E preciso renovar o meu cadastro na TAM para usar as milhagens mas a TAM não aceita minhas mensagens, preciso descobrir meu código de acesso ao Simples, preciso verificar o alvará na prefeitura, preciso verificar se já registraram o meu pagamento de IPTU porque, senão, a nota fiscal não é emitida, preciso pagar o IPVA e meu coração se aperta, será que caí na malha fina?
Já sabemos quantos meses trabalhamos para sustentar os governos e pagar os custos sociais, que somos um dos países mais caros do mundo em termos de impostos. Agora sabemos que entre os países que mais cobram impostos somos o pior em retorno de benefícios à sociedade. Já está calculado o percentual de nossos impostos que é perdido, o pior do mundo.

Mas ainda falta calcular o tempo que o cidadão gasta para se manter em dia com a burocracia, e não apenas a dos governos, mas a do sistema. Deve ser a mesma medida do imposto perdido, a do tempo perdido, que decerto custa uma verdadeira fortuna em perda de produção, mesmo sem levar em conta a angústia, o aborrecimento, a depressão que nos acomete a cada impasse burocrático. A minha impressão é que eu gasto não só cinco meses trabalhando para pagar os impostos, mas também cinco meses em desgastes burocráticos. Meu tempo se esvai em tarefas... Como dizia o John Updike, “eu amo o meu governo na medida em que ele me deixa em paz”.

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