domingo, 29 de junho de 2014

"Se eu Fosse Tostão", de Pedro Salgueiro, para O POVO

Nunca possuí um relógio: a passagem do tempo contada assim em tique-taques me assusta. O contínuo matraquear da ampulheta de metal me segreda: “mais um, menos um”. Racionalmente tento minimizar esse sofrimento – me convencer de que o tempo é apenas uma convenção entre tantas que o homem foi inventando para ordenar o viver.
Podemos medir nossa existência no tempo através de eventos regulares, como a Copa do Mundo de Futebol, por exemplo. Frequentemente escuto algum comentarista esportivo dizer, não sem uma pontinha de orgulho, que já “cobriu” tantos mundiais de futebol: a maioria dos outros participantes da conversa sequer era nascida.
Eu, que nasci em 1964, tinha seis anos incompletos na Copa de 70. Recordo-me de pouquíssimas passagens do famoso evento: uma paródia musical que brincantava com “se eu fosse o Tostão, tirava o calção; se eu fosse o Pelé, tomava café”, porém o que mais me marcou nessa copa vitoriosa foram as figurinhas de chicletes com fotos de jogadores – com elas brincávamos do “bate” (versão interiorana do “bafo”), onde, numa roda de amiguinhos, tentávamos virar as figurinhas usando as habilidades e os truques mais inusitados possíveis; e, entre correntes de vento cuidadosamente estudadas e melecas e cuspes na palma da mão, me restou uma saudade que ainda hoje me mareja os olhos: o cheiro delicioso do chiclete depois de muito mastigado.
Da de 74 me recordo vagamente (mas eu já sonhava em ser jogador) da decepção do jogo contra a Holanda, da grande correria da “laranja mecânica”, que atropelou impiedosamente Leão, Luiz Pereira, Rivelino, Jairzinho e seus companheiros; pouca coisa mais, como o chão frio da casa do tabelião Fernando Farias (onde assistimos aos jogos), um “foguete” de Rivelino derrubando um atleta da barreira do Zaire. Em 78 eu tinha quase certeza de que na próxima copa estaria entre os convocados: meu pai sapateiro me fizera um par de chuteiras com “biscoitos” de sola que confirmava essa hipótese.
Da Copa de 82, já em Fortaleza estudando para o vestibular, guardo as lágrimas, a perda da inocência e uma profunda revolta contra os “deuses do futebol”: nunca mais vi o esporte com olhos românticos e até hoje não consigo ver nenhum lance daquele campeonato, mesmo os gols e grande jogadas; se a TV reprisa qualquer jogada eu viro o rosto, um travo na garganta só comparável com o do término do primeiro namoro. Para “coroar” o ano terrível, logo depois da copa morre meu querido pai.
Em 86 e 90 eu era universitário e havia perdido todo o sonho de ser atleta: um universitário não deveria ser um “alienado”, rezava a cartilha marxista-leninista que me regia; no fundo sofria com cada derrota. Mas nem as vitórias de 94 e 2002 ou as derrotas de 98, 2006 e 2010 “mexeram” mais com meus sentimentos, apenas surfei na onda do “divertimento geral da nação”.
Somente dia desses fiz essa associação de cada Campeonato Mundial de Futebol com determinado período de minha vida: desde a inocência de 70 até a frieza de 2010, passando pela monumental tragédia de 82. Cada uma com seu contexto, seus problemas, suas (des)ilusões.
Hoje, às vésperas de completar 50 anos, não espero mais um Brasil campeão, nem mesmo que tudo transcorra em paz nesses bicudos tempos de protestos, apenas desejo sobreviver com saúde a pelo menos umas três Copas do Mundo.

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