quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Coisas Engraçadas de Não se Rir: a Moderna Inquisição", crônica de Raymundo Netto para O POVO (3.10)

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(Monteiro Lobato rindo muito a pensar: "Mas será possível que nada mudou...")


Eu tinha 10 anos. Ia, por semanas, a pé para casa, sob um sol cearense de meio-dia, economizando o dinheiro do ônibus e da merenda, ansioso por visitar, nas Lojas Americanas, a tentadora prateleira da editora Brasiliense. Nela, folheava um a um dos livros de histórias da turma do Sítio do Picapau Amarelo. Na meninice, sentia-me acolhido naquele pequeno mundo, produto da genialidade de um Monteiro Lobato, daqueles que a nossa literatura pena, pensa e descobre: existe outro igual no mundo? Não, nenhum. Para orgulho brasileiro.
Há algum tempo, porém, o velho compadre Bento teve uma de suas obras censuradas — não gosto do termo, mas só sei que foi assim — pelo caráter racista e antiecológico. A coisa não parou por aí, questionaram não apenas a obra, mas se aproveitaram do momento para tirar o recalque em cima do autor, arrancando-o cruelmente de seu tempo e, na segurança do poder — alimentá-lo é um perigo — já estendem o olhar a outras obras, como uma coletânea de contos, organizada recentemente por outro autor, proibida de ser distribuída às escolas devido conter em alguns dos textos, segundo eles, referência erótica e alusão às drogas.
Recentemente, me pediram para escrever um texto infantil. Concluído, o Conselho Editorial, composto por pedagogos, o recusou. A justificativa era simples: continha metáforas! Sim, metáforas. “As crianças não iriam entender. Não poderia retirá-las, um pouquinho? Retirando, publicamos.” Entendi, então, o porquê dessa enxurrada de literatura pão-pão-queijo-queijo (infantil?), chatésima, monótona, desimaginativa, de uma linearidade lógica que só empobrece a cabeça de qualquer um. Essa literatura sem riscos, escrita a algemas, de vocabulário fácil, frases curtas, com riminhas “que descem a rama pelo chão”, repleta de adolescentes rebeldes, ou didatismos e moralismos imorais, meramente comercial, é que chega facilmente nas prateleiras das escolas. Sim, deixemos de lado o Lobato e continuemos comprando milhares de “Harry Potter” — aliás, em Hogwarts existe algum personagem negro? —, muito mais simples, convenhamos, que encarar a literatura infantil de nosso autor, um transgressor irreverente que muda a ordem das coisas, transforma as certezas de um mundo pré-concebido e determinista pelo pensamento filosófico e questionador da boneca de pano, Emília — se fosse a Barbie ninguém reclamava —, seu alter-ego, a mostrar para as crianças que o mundo, assim como a vida, não pode ser só isso ou pode ser qualquer coisa que nós quisermos. Não é à toa que Lobato foi perseguido, preso, ridicularizado e ainda teve seus livros queimados... Que perigo: fazia pensar! Não só pelo que escrevia, mas por tudo que havia no que escrevia e pelo que representava. Este, talvez, o maior segredo de quem produz, de fato, literatura.
Eles, togados ou não, paranoicos defensores dessa censura disfarçada de lucidez e de boa intenção — da qual esta, sim, o inferno está cheio —, acusam-nos sempre a necessidade da leitura “atenta” para se perceber aquilo que, novamente eles, que não tiveram infância, ou melhor, não tiveram oportunidade de conhecê-lo nela, são incapazes de compreender — e de julgar: Monteiro Lobato escrevia para crianças, mentes privilegiadas a não pensar nunca por essa lógica preconceituosa e racista deles... ainda bem!
Eu, como milhares e milhares de leitores dessa literatura lobatiana, juro: nunca saí queimando nem batendo em negros — desculpem-me, quis dizer “afro-descendentes”, como eu — no meio da rua, mesmo tendo lido, relido e sonhado com essa turma do Sítio. Ademais, estou para ver uma negra tão mais querida em toda a nossa literatura do que a amorosa Tia Nastácia.
Condenar a obra de Lobato, para mim, é cuspir no próprio prato e ofender os leitores em geral, julgando-os por baixo. Daqui a pouco, com mais leituras “atentas”, irão censurar as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, e paro por aqui para não dar mais ideias a esses que, ou são mau leitores, nada entendem do fazer literário ou precisam de férias.
Prezados Conselho Nacional de Educação e Supremo Tribunal Federal, aproveitem: proíbam também as novelas (eca!), os filmes do cinema, o teatro, os quadrinhos... Proíbam a internet e as redes sociais, mas, se quiserem mesmo fazer um bom trabalho, comecem a lutar pela melhoria da EDUCAÇÂO, da formação e remuneração dos professores, e acabem de uma vez com os preconceitos raciais, de gênero, de credo e a violência e a injustiça na sociedade da VIDA REAL, porque investir contra a nossa indefesa literatura — num país de não-leitores — é pura covardia.

4 comentários:

  1. O maior absurdo do século! Imagina, se era preconceito, nós, meninas cearenses, nos tratar por "neguinha", umas às outras? Já a turma toda era "negrada"...era assim, na Fortaleza de 1950 e tantos...que eu me lembre! Sendo que a maioria era de meninas brancas, leitoras contumaz de Monteiro Lobato, o maior na literatura infantil de todos os tempos. Foi a primeira coleção que dei pro meu filho, na década de 1980...(relíquia)...
    Pura covardia...pura ignorância!

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  2. Presentão que você deu ao CLUBE DO LEITOR CCBNB, Ray Netto! Procuro há dois meses um texto com esse teor para discutirmos com o público próximo dia 19 aqui no Cariri. Você, que é um dos nossos autores já lidos e discutidos (com as calcinhas voadoras... rsrsrs) voltará para mais um debate caloroso.

    O "politicamente correto" pode ser uma faca de dois "legumes". Mudando um pouco o foco do assunto... Texto de humor se faz rindo de quedas, micos, pobreza, avareza, excesso de magreza ou de gordura, etc. Mês passado tivemos q selecionar textos para um evento LITERÁRIO de humor e nos vimos no impasse. E podemos rir do outro?

    É dificílimo SER ESCRITOR num mundo onde quase tudo é preconceito, racismo ou bullying. É uma linha tênue e não é fácil encontrar o equilíbrio. Mas precisamos tentar!

    Grata pela contribuição!

    PS: Em tempo, não precisa pedir desculpas por ser negro de pele branca. O sol (e a sombra) nasceram para todos!

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  3. Raymundão, você disse o que todos nós queríamos e muitas vezes não temos coragem (ou palavras?). Compartilho do seu pensamento: me diverti e aprendi com o "Sítio" de Lobato e, até que provem o contrário, sou bom filho, bom pai, enfim amo e respeito meu semelhante. O preconceito, muitas vezes, está na mente de quem faz essas críticas.

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  4. Das suas palavras faço as nossa.
    Nada mais verdadeiro.
    Não se pode julgar uma obra pelo tempo de agora.
    Análises mal realizadas e falta de discernimento e pesquisa trazem à tona esse tipo de pensamento.

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