domingo, 4 de julho de 2010

"Encomenda para o Cronista (ou sobre o efeito da ficção)", conto inédito de Carmélia Aragão


“sem jamais ter efetivamente visto uns aos outros nem a si mesmos, mas apenas sombras dos outros

e de si mesmos porque estão no escuro e imobilizados”.

I

Era preciso estar no prédio da Ghost Writer às 9h, conforme o último telefonema, às 6h, quando eu ainda desembarcava de Lisboa. Nem mesmo a publicação de Budapest causou tanta polêmica, apesar da circulação em nível nacional e internacional. Inclusive, ele provocou uma onda de curiosidade sobre a vida dos escritores-fantasmas. E a paixão pela contravenção foi tanta, que nos encomendaram livros de memórias de ghost-writers: todos queriam ser um. Mas nós nos mantivemos no nosso lugar.

Trabalhar na revista Ghost Writer era escrever “sobre” e “para” sujeitos indeterminados. Publico matérias, organizo convenções, fecho contratos. Todos me veem e me leem, mas ninguém me conhece. Muitas vezes me assusto quando me dirigem a palavra na rua, geralmente, para perguntar alguma banalidade (as horas, por exemplo), mas é como se eu fosse um corpo esquecido de si mesmo. Devo ter mais nomes do que o diabo.

No saguão do prédio, não acreditei quando me disseram que todos estavam ali desde o dia 18 de junho. Os telefones não paravam de tocar. Senti como se fosse iniciar o périplo pelos anéis do Inferno ao ver tantos fantasmas, tantos cretinos e tantos desacreditados ao meu redor, mendigando em todas as línguas. Segui para a cobertura para ter com aquele ser supremo tão sem nome quanto eu.

II

Ele estava em sua enorme mesa de vidro com um pedaço de jornal na mão, mil vezes lido, mil vezes amassado, “Você leu a tal da crônica?”. “Pensei que ainda fossem os reflexos de Budapest”, aliviei-me por não ter muito que dizer. “Quem dera fosse! Mas este cronistazinho não se interessa por esse tipo de literatura! Qualquer dia vai virar um sapo parnasiano, desses que batem aqui na porta, buscando reconhecimento, porque só lhes faltam alguns anos de vida. Pra mim, ele não é um problema...”. A raiva dele era tanta por causa do estardalhaço que aquele pedaço de jornal havia causado. Sim, sei que o problema é a lista com mais de 4 mil endereços que ele possui”. Ele sorriu porque não precisávamos mais falar um com o outro, já éramos quase como um só. “Exatamente! Daqui a pouco você vai tomar as providências quanto a esse assunto, porque agora vai resolver o segundo problema que essa croniqueta nos causou”. “Qual?”. “O Rapaz com cerca de vinte oito anos, pele clara, cabelos volumosos e óculos coloridos com aros plásticos, se jogou ontem do quarto andar de um shopping aqui da cidade e você vai registrar esse momento inesquecível da vida dele e vai enviar pro amigo cronista”. Ele estava recitando a descrição do rapaz, tal qual estava no jornal e tal qual eu o vira mais tarde no caixão ao lado de uma mãe idosa e da irmã. O suicídio era comum entre os escritores-fantasmas, coisa que acontece quando sombra e luz entram em conflito. No entanto, esse suicídio era quase um favor que o rapaz nos fazia, mas não acredito na gentileza de ambas as partes.

III

À noite, telefonei pro cronista, “Chegou uma encomenda pro senhor, está na portaria”. Desliguei. Minutos depois, ele desceu e eu o vi. Estava com os mesmos cabelos grisalhos, porém mais curtos e mais ralos de como quando eu o havia encontrado a primeira vez, na feira de Aracati, há uns 5 anos. O envelope continha a foto do rapaz com a família, o recorte da crônica e o pedido da lista de contatos. Marcamos no mesmo local e horário que ele havia descrito, na Ponte sob as “escuras melancolias”.

O cronista devia estar confuso. Talvez nunca tivesse imaginado o quanto escrever era perigoso, nem mesmo aquilo que parece tão simples e cotidianamente banal escapa. O leitor é uma praga, um bicho ardiloso, sem escrúpulos, às vezes seletivo, outras vezes, um glutão debochado. Mas quem se preocupa com o leitor é o escritor, já faz um bom tempo que os substituí pela palavra “consumidores”. E consumidor é aquele indivíduo que está interessado em comprar e se satisfazer com os seus bens de consumo. Problema é que nem sempre o bicho escritor entende assim e se debate cheio de ética, mas que, no fundo, todo o dilema da sua vida gira em todo de uma só palavra: a vaidade.

IV

O cronista veio em minha direção, já nos conhecíamos de cinco anos antes. “Eu estava presente no café da manhã quando você, tão tímido e deslocado, despertou a inveja do mundo dos seres que vivem ao sol”. “E agora, você está aqui, porque despertei a inveja do mundo das sombras”, disse-me com um ar cansado de quem não dormira e me entregou o envelope amarelo. Eu sabia que aquele envelope era fruto daqueles cinco anos passados. “Agora é começar de novo”, suspirou. “É, mas você não precisa mais ir ao edifício mais alto da cidade, contemplar a vista e invocar o diabo, porque eu já estou aqui e estamos de frente pro mar”. Atirei o envelope. Ele, calado, olhou-me como quem perguntava se o ritual mefistofélico chegara ao fim, “Pronto, podemos ir pra casa?”. Ri, “Sorte a sua de ter para onde voltar”. “E você está indo pra onde?”. Agora o último suspiro era meu, “Estou indo a Lisboa, visitar o túmulo de um amigo que morreu por esses dias, mas como ele está morto, não tenho mais tanta pressa”.

Carmélia Aragão é contista, graduada e mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará, atualmente, doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade do Rio de Janeiro. Com prêmios em concursos literários, é autora de Eu Vou Esquecer Você em Paris, obra ganhadora do Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura, categoria Contos em 2006.

3 comentários:

  1. E eu sou fã dela, ó? Da pessoa e da escritora :)

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  2. Caro Raymundo Netto,

    O "Ghost-Writer" profissional pode estar com os seus dias contados, com a supressão do seu ganha-pão. Isso, em virtude da decisão da justiça, que considerou improcedente a ação movida pelo poder público contra um grupo de candidatos que exibiu, para fins de prova de título, em concurso estadual, livros "baixados" na internet. Na interpretação da lei, somente a parte lesada (autores e seus herdeiros) poderia peticionar reparação.
    Um Machado de Assis, que não teve herdeiros legítimos ou reconhecidos, por exemplo, pode ser uma boa pedida.
    Atenciosamente,

    Marcelo Gurgel

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  3. Oi, amigo, esqueci um detalhe tão óbvio. Bj

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