Entrevista de ANNA NÍVEA COSTA
Especial para O POVO
12.12.2022
Num diálogo vivo entre a memória, a
cidade, a cultura e o fantástico, o escritor Raymundo Netto celebra quinze anos
de crônicas publicadas no Vida&Arte.
Desde 2007, o autor se inspira no
cotidiano da capital cearense para a criação de narrativas astuciosas. Autor de
obras premiadas, como Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, vencedor
do I Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará
(Secult), Raymundo atuou como jornalista, editor e produtor cultural. Atualmente,
desenvolve trabalhos como gerente editorial e de projetos da Fundação Demócrito
Rocha (FDR).
Para comemorar a duradoura
colaboração, o cronista concedeu uma entrevista em que comenta, entre outros
assuntos, sobre o papel da crônica na vida dos brasileiros, a história do
gênero e os próximos lançamentos.
O POVO - VOCÊ JÁ SE AUTOCENSUROU EM ALGUM MOMENTO POR ACHAR
QUE NÃO DEVERIA ABORDAR DETERMINADO TEMA EM SEUS TEXTOS?
RN: É possível até que em algum momento isso possa ter
acontecido, sim, domando algum arroubo por um motivo diverso, mas geralmente
não sou disso, pois acredito que essa liberdade que o próprio jornal me
permite, deve ser explorada, e que o leitor gosta disso, dessa eloquência, mesmo
quando ela chega para eles, no mínimo, trajado de sarcasmo ou ironia.
O POVO - AO LONGO DOS ÚLTIMOS QUINZE
ANOS ESCREVENDO PARA O CADERNO "VIDA & ARTE", DO O POVO, QUAL
TEXTO MAIS TE MARCOU E POR QUÊ?
RN: É uma pergunta extremamente difícil. Nem sei quantos
textos escrevi até então nesses 15 anos. Entretanto, posso assegurar que desde
a primeira crônica publicada eu tinha um projeto literário. Não é à toa que a
maioria delas, após um descanso merecido, enveredaram para enfeixar livros,
como é o caso do Crônicas Absurdas de Segunda (EDR, 2015) (ganhador do
Edital de Incentivo às Artes da Secult 2015 e finalista do Prêmio Jabuti de
Literatura em 2016) e o Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019) (ganhador
do Edital de Incentivo às Artes da Secult 2017). E nesses 15 anos, mudei aqui e
acolá de estratégia, de temática, de estilo, por necessidade própria de
experimentar, de exercitar-me, de curtição mesmo, pois eu curto escrever, não
me sentindo obrigado a nada. Não tenho pretensão nenhuma, nem carrego a ilusão
cor de rosa de que escrever ou publicar é um sonho. Não, mesmo. A única ambição
que tenho é ser lido pelo maior número de pessoas possível, desde que não tenha
que ser outra pessoa para isso.
O POVO - NA SUA OPINIÃO, POR QUE A CRÔNICA CONTINUA SENDO
CONSUMIDA MESMO APÓS O FECHAMENTO DE TANTOS VEÍCULOS IMPRESSOS?
RN: A crônica, apesar de ter surgido, pelo menos se
popularizado, no veículo jornal, independe completamente dele. Muitos de nós,
leitores de crônicas, as conhecemos já impressos em antologias famosas, por
meio de vozes como Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Cecília Meireles, Sérgio
Porto/Stanislaw Ponte Preta, Rachel de Queiroz, Luís Fernando Veríssimo, Paulo
Mendes Campos, entre tantos outros. Claro que muitos desses textos saíram de
páginas de periódicos antes de pousar em livros. Sabemos disso. Mas é um gênero
muito fácil de ser acolhido, mesmo pelos leitores menos proficientes, por isso
muito utilizado em salas de aula, devido às suas características, como a de ser
um texto curto, de construção simples, permitindo fluidez na leitura, com
vocábulos comuns e termos coloquiais, e geralmente em torno de temas e
situações corriqueiras do cotidiano. Além de, boa parte delas, se sustentarem
no humor, coisa que o brasileiro gosta demais, e a crônica, como hoje a
conhecemos, é mais brasileira do que qualquer outra coisa.
O POVO - VOCÊ TAMBÉM ABRAÇA O
FANTÁSTICO EM SUAS OBRAS, COMO EM CRÔNICAS ABSURDAS DE SEGUNDA. DE QUE
MODO A FABULAÇÃO DO REAL AJUDA NA CONSTRUÇÃO DE TEXTOS QUE ABORDAM O PRESENTE
PALPÁVEL?
RN: O fantástico, o absurdo, o estranho, enfim, esses
gêneros e subgêneros são muito atrativos e provocadores desde o século XIX.
Quando fui convidado a escrever os textos que originaram o Crônicas...,
tinha uma exigência editorial: o cenário de Fortaleza. O resto era por minha
conta. Na primeira crônica, bati um papo com a estátua da Rachel de Queiroz
sobre crônicas, depois nos chega um ET no Benfica quando o mundo acabou. Cruzei
a cidade com um José de Alencar de tênis e mochila. Assisti à luta de José
Alcides Pinto contra o Dragão de Sobral. Deparei-me com um espantalho que tinha
a cara do Francisco Carvalho e com uma barata falante que era mesmo que ver o
Airton Monte... Daí continuaria a
encontrar com cronistas vivos ou mortos do Ceará, nas ruas de Fortaleza, em
situações absurdas, mas baseando-me sempre em algo que acontecia na cidade. A
verdadeira cidade parecia ser essa aparentemente irreal.
O POVO - DIANTE DAS MUDANÇAS NO MERCADO JORNALÍSTICO, E DE UM
GOVERNO QUE NEGLIGENCIOU A CULTURA NOS ÚLTIMOS ANOS, QUAL A IMPORTÂNCIA
CRÍTICO-SOCIAL DAS CRÔNICAS?
RN: A literatura, assim como a arte e as baratas,
sobreviverá. Como disse, independentemente do jornal ou mesmo do papel, do
impresso, a crônica resistirá, continuará a ser escrita e lida. E devido à
ausência de limites e hibridismos, ela há de sempre conquistar o mundo,
incomodando-o, provocando-o, denunciando, fazendo pensar ou simplesmente
trazendo de volta a cor a corações destintos.
O POVO - O QUE OS LEITORES PODEM ESPERAR DE FANTÁSTICOS
E COISAS ENGRAÇADAS DE NÃO SE RIR?
Voltando ao que afirmei sobre
escrever sempre pensando em um projeto literário, esses dois novos títulos, que
espero serem lançados em 2023, me chegaram assim. Fantásticos é a
reunião de contos no gênero, ou bem próximos a ele, com características
diversas, empregando alguns dos elementos sobrenaturais, de horror, suspense ou
mesmo de estranhamento ou fantasia, mas com um tempero nosso, por vezes fugindo
do clássico. A literatura não abre mão de ser livre.
Já Coisas Engraçadas de não se rir
é uma reunião de crônicas, também publicadas anteriormente no jornal O POVO,
que levanta o tapete da sala de estar e revela o que escondemos por debaixo
dele: o ridículo da humanidade. É uma obra mais humorada, às vezes até picante,
despudorada, usando da comédia, da ironia e de muito exagero para interpretar o
ser esquisitoide que somos.
E o que eu espero: que as leitoras e
leitores se divirtam, que curtam, e que essas leituras acrescentem algo na
forma como eles veem o seu entorno e como se comunicarão com ele depois de. A
vida é curta, mas a arte transcende tudo isso.