Percebi o poder e o mistério de se estar perigosamente distraído num instante banalíssimo
de um jogo de futebol, explico: não encontrando lugar nas arquibancadas do
Estádio Presidente Vargas, procurei uma fresta entre os que se espremiam ao pé
do alambrado junto ao campo; a partida corria solta num empate disputado, com perigo
de ambos os lados; eu mal avistava o gramado, levando esbarrões laterais dos
nervosos torcedores, então fiquei num misto de distração entre ouvido acompanhando
as emissoras de rádio, xingamentos vindos das arquibancadas e força de ombro
para não ser jogado pra fora do campo de visão do espetáculo...
Fiquei num estado de sonambulismo de
atenções, não sabia em que plano sobrevivia naquela loucura, se no auditivo, no
visual ou no meramente corporal, nisso fui perdendo as rédeas da partida e
imaginando situações noutros níveis mentais; fechasse os olhos não saberia se
estava numa feira, show musical, corrida de cavalos ou...
De repente estiquei o pescoço para a trave
que estava à minha esquerda, logo percebi envergonhado que o ataque estava do
outro lado, meu lado direito, então balancei a cabeça e me afastei um pouco,
envergonhado pelo meu erro... Mas foi somente o tempo de ter que esticar
novamente o pescoço e ficar na ponta dos pés, para ver ainda o gol... Desta vez,
verdadeiro, um gol, sim!, num rápido contra-ataque o time visitante fez seu
tento... lá na trave esquerda... Isso mesmo, aquela mesma trave com a qual me
enganara segundos antes.
Na hora as vaias da torcida, os protestos
e reclamações dos jogadores, objetos jogados no campo, não me deixaram pensar
no assunto, mas chegando a casa, e até hoje, lembro essa pequena premonição
proporcionada pela minha máxima distração.
Décadas após, numa daquelas
crônicas/poemas de Clarice Lispector (“Por não estarem distraídos”, do livro A
Descoberta do mundo: crônicas, de 1984.), encontrei uma possível explicação:
“Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele
procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no
entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das
ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só
porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só
porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque
quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender
que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa
para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da
espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos”.
Outros anos depois, encontrei no texto “Cristal com uma rosa dentro”, do Tomo II, do livro Último Round, de Julio Cortázar, esta pérola: “O estado que definimos como distração poderia ser de algum modo uma forma diferente da atenção, sua manifestação simétrica mais profunda situada em outro plano da psique; (...) Não é raro que no indivíduo acostumado com tal tipo de distrações a apresentação sucessiva de vários fenômenos heterogêneos crie instantaneamente uma apreensão de homogeneidade deslumbrante”.
E hoje sei que – parafraseando Leminski – “distraídos enxergaremos” bem mais.
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