Deu-se que assim quedou-se sozinha numa
quitinete antiga, inda dura de pagar, aos maus cuidados do esquecimento.
Tentaria, mas voltar para casa dos pais, nem pensamento, nem coragem.
Angustiava-lhe,
contudo, o banheiro. Às horas escuras, as baratas reinavam. Por vezes, queria
usá-lo, mas à visão nojenta e aterradora de dezenas delas desistia-lhe a
vontade. Percebia-lhes nas gretas da parede, nas frinchas do piso, no descuido
do ralo, por todos os cantos. Saíam elas protegidas, ligeiras, com propriedade
tradicional de uso.
No abrigo
escuro da noite, no travesseiro, além do seu cheiro em tudo, podia ouvir
centenas de terríveis patas a deslizar. Corriam, acasalavam-se. Mais baratas,
cada vez mais. Pânico!
Ao
banheiro, quando inevitável, sentava-se no aparelho: abraçada aos joelhos,
encolhia as pernas e acompanhava de olhar para cima a lâmpada num estalar
piscativa. Sabia, a qualquer momento de saltar pela porta nunca fechada.
Angustiava-se a chorar. Arrependimento matasse, morria.
Pela manhã,
acendia a luz do banho, e assim a deixava, por tempo, com suficiência para
dominar o território, anunciar o tratado de paz: baratas e ela. Só depois se encorajaria
ao chuveiro, sempre alerta ao descuido de uma ou de outra a apresentar-se sem
respeito à suposta trégua.
Esforçava-se,
por isso, a passar o dia fora: em busca do emprego, a merendar, a pretexto de
visita, em casa de amigas, a encostar-se no banco da pracinha, a repensar a
volta no último degrau da escada.
Na
quitinete, quando vencida, olhava pela porta do banheiro e lá estavam as
malditas.
Naquela
noite, o calor sufocava. Sem banhar-se, sem o sono, enlouquecia.
Acendeu a
luz. Alvoroço entre os insetos. Pacto rompido. Recuaram. Silêncio.
A moça se
despiu. Pendurou as roupas em inalcançáveis. Passos inseguros a encostaram a um
canto. Pronto. Imaginou: “a água as espanta!”
Molhava o
corpo nu, alvo e belo, quando a lâmpada deu último estalo e caiu como a noite.
Escuro absoluto. Silêncio quebrado. Centenas de patas. O derradeiro grito se
ouviu, agonioso, devorado por seguinte silêncio a ecoar até a chegada de outra
moça fugidiça a responder ao convite da tabuleta de frente do prédio: “Temos
Vagas”.
Excelente como sempre. Estilo único de escrever. Adoro 👏👏👏👏
ResponderExcluirGrecianny, muito obrigado pela leitura e pelas pelavras de estímulo. rsrs
ExcluirHum...👏👏👏 inusitado, o desfecho !
ResponderExcluirAgradecido pela leitura.
ExcluirCuidado, moça,
ResponderExcluirCujo barco nas vagas
Em desassogo balouça!
Cuidado com " Temos vagas "!
Uma vez Raymundo, sempre Netto. Como de costume: adorei. Quanto grito devorado por silêncios que ecoam ad nauseam! Conheces certamente; recomendo a despeito: As formigas, de Lygia Fagundes Telles. Estas, já há algum bom tempo, e doravante as baratas não me dão trégua. Arre égua!
Manduquices ótimas. Não conheço esse conto da Lygia, mas estou de olho no volume de Contos dela. Em breve, conhecerei essas abusadoras... Valeu, amigo.
ResponderExcluirMaravilha, amigo. "As malditas", assim o Airton as chamava.
ResponderExcluirAs malditas e eternas baratas, últimas sobreviventes, as que herdarão o nosso mundo...
ExcluirE tudo termina quando começa,com a placa chamativa. Muito bom, Raymundo.
ResponderExcluir... e depois termina de novo, começa de novo... rsrs Obrigado, Zélia.
ExcluirRaymundo Netto, essas suas baratas vão atormentar o meu sono, pois tenho a essa peste. Eita, que conto impressionante e apaixonante, daqueles que desejamos ler por muitas horas, embora sentindo que estamos dentro daquele ambiente miserável e aterrador. O bom escritor é aquele que nos leva para dentro da cena. Parabéns, querido amigo, seu trabalho é muito precioso! Abraço.
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